Nada justifica o atentado e o preconceito
Se o atentado de semana passada é abominável, também o é o racismo estampado nas páginas do ‘Charlie Hebdo’, como metralhadora giratória que atira contra tudo e todos
Nada justifica o atentado
odioso ocorrido em Paris, semana passada, quando extremistas islâmicos
invadiram o escritório do jornal “Charlie Hebdo” para executar
cartunistas, matando ainda mais outras oito pessoas. Crime covarde e
inaceitável. Nada o justifica.
Na França e em diversas partes do mundo, multidões nas praças públicas assumiram a frase já símbolo do repúdio ao crime: “Eu sou Charlie". Se a reação coletiva e pública de rejeição ao crime é louvável, também não deixa de ser, ao mesmo tempo, surpreendente: por que a maioria da opinião mundial assume, simbolicamente, a identidade do periódico?
“Charlie Hebdo” é um jornal racista. Por meio de cartuns e palavras, amparado na liberdade de expressão e no humor, ataca e ofende religiões — e não somente a muçulmana — etnias, nacionalidades as mais variadas, gêneros, desrespeitando tudo e todos. Isso é engraçado? Ser Charlie é, antes de tudo, ser racista, preconceituoso, intolerante diante da diferença. É atiçar o ódio, o conflito, a guerra.
O slogan, portanto, traz essa contradição: ao repudiar o crime de uma facção jihadista, com razão considerada intolerante, assume, na contramão, a identidade racista e preconceituosa do “Hebdo”. Contra a barbárie do crime, assume a barbárie do preconceito, do estereótipo. Basta uma breve pesquisa no Google para constatar a “filosofia” dos cartunistas.
A França tem um passado de guerras civis provocadas por intolerância religiosa ou política de grau máximo. Cito apenas dois exemplos. No passado distante, na Noite de São Bartolomeu, em 1572, foram executados, por católicos fanáticos, milhares de protestantes, incluindo crianças, idosos e mulheres desarmadas. Isso em uma época em que a religião, entre cristãos europeus, era questão de vida ou morte. A Noite de São Bartolomeu tornou-se um exemplo da violência religiosa da época, como mostra o filme clássico de D.W. Griffith, “Intolerância”, de 1916. No passado recente, durante a Segunda Guerra Mundial, o país viveu uma autêntica guerra civil entre colaboracionistas ou apoiantes do regime de Vichy, aliado do ocupante estrangeiro, a Alemanha nazista, e os combatentes da Resistência.
A França, assim como a Europa, em geral, vive há algum tempo o fenômeno das imigrações em massa, com a chegada de milhões de pessoas de diferentes origens, fugindo de guerras, perseguições, misérias sem fim, que devastam seus países. As sucessivas gerações já radicadas produziram um país multicultural. As tensões presentes nessa configuração são enormes. Muitos já são cidadãos, nascidos no país, alguns integrados à cultura francesa, embora a maior parte se sinta marginalizada, povoando as periferias, alocados em trabalhos desqualificados, desempregados. Mas são todos franceses de procedência diversa.
É no mínimo curioso que Le Pen, mentor da ultradireita francesa nas últimas décadas, tenha repudiado o atentado, sem endossar o lema Je suis Charlie. Rejeitou o atentado porque foi ato criminoso e perpetrado por grupos que ele rejeita a priori; mas rejeitou também o jornal, por considerá-lo anarco-trotskista, logo inimigo do movimento que lidera. Ficou mesmo é numa saia justa. Mas não percebeu, ou fingiu não perceber, que a Frente Nacional compartilha certas ideias do “Charlie Hebdo". Ambos racistas.
Se o atentado de semana passada é abominável, também o é o racismo estampado nas páginas do “Charlie Hebdo", como uma metralhadora giratória que atira contra tudo e todos, apostando nos ódios e conflitos sob o pretexto de fazer graça. A França já deveria ter aprendido a lidar com as diferenças religiosas, políticas, nacionais e raciais, que marcam a sua história. Revalorizar o melhor do Iluminismo, como Rousseau. Lembrar da liberdade, claro, mas também da igualdade e da fraternidade, a tríade que compunha o lema da sua grande Revolução.
Por: Denise Rollemberg é professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense - Publicado em O Globo
Na França e em diversas partes do mundo, multidões nas praças públicas assumiram a frase já símbolo do repúdio ao crime: “Eu sou Charlie". Se a reação coletiva e pública de rejeição ao crime é louvável, também não deixa de ser, ao mesmo tempo, surpreendente: por que a maioria da opinião mundial assume, simbolicamente, a identidade do periódico?
“Charlie Hebdo” é um jornal racista. Por meio de cartuns e palavras, amparado na liberdade de expressão e no humor, ataca e ofende religiões — e não somente a muçulmana — etnias, nacionalidades as mais variadas, gêneros, desrespeitando tudo e todos. Isso é engraçado? Ser Charlie é, antes de tudo, ser racista, preconceituoso, intolerante diante da diferença. É atiçar o ódio, o conflito, a guerra.
O slogan, portanto, traz essa contradição: ao repudiar o crime de uma facção jihadista, com razão considerada intolerante, assume, na contramão, a identidade racista e preconceituosa do “Hebdo”. Contra a barbárie do crime, assume a barbárie do preconceito, do estereótipo. Basta uma breve pesquisa no Google para constatar a “filosofia” dos cartunistas.
A França tem um passado de guerras civis provocadas por intolerância religiosa ou política de grau máximo. Cito apenas dois exemplos. No passado distante, na Noite de São Bartolomeu, em 1572, foram executados, por católicos fanáticos, milhares de protestantes, incluindo crianças, idosos e mulheres desarmadas. Isso em uma época em que a religião, entre cristãos europeus, era questão de vida ou morte. A Noite de São Bartolomeu tornou-se um exemplo da violência religiosa da época, como mostra o filme clássico de D.W. Griffith, “Intolerância”, de 1916. No passado recente, durante a Segunda Guerra Mundial, o país viveu uma autêntica guerra civil entre colaboracionistas ou apoiantes do regime de Vichy, aliado do ocupante estrangeiro, a Alemanha nazista, e os combatentes da Resistência.
A França, assim como a Europa, em geral, vive há algum tempo o fenômeno das imigrações em massa, com a chegada de milhões de pessoas de diferentes origens, fugindo de guerras, perseguições, misérias sem fim, que devastam seus países. As sucessivas gerações já radicadas produziram um país multicultural. As tensões presentes nessa configuração são enormes. Muitos já são cidadãos, nascidos no país, alguns integrados à cultura francesa, embora a maior parte se sinta marginalizada, povoando as periferias, alocados em trabalhos desqualificados, desempregados. Mas são todos franceses de procedência diversa.
É no mínimo curioso que Le Pen, mentor da ultradireita francesa nas últimas décadas, tenha repudiado o atentado, sem endossar o lema Je suis Charlie. Rejeitou o atentado porque foi ato criminoso e perpetrado por grupos que ele rejeita a priori; mas rejeitou também o jornal, por considerá-lo anarco-trotskista, logo inimigo do movimento que lidera. Ficou mesmo é numa saia justa. Mas não percebeu, ou fingiu não perceber, que a Frente Nacional compartilha certas ideias do “Charlie Hebdo". Ambos racistas.
Se o atentado de semana passada é abominável, também o é o racismo estampado nas páginas do “Charlie Hebdo", como uma metralhadora giratória que atira contra tudo e todos, apostando nos ódios e conflitos sob o pretexto de fazer graça. A França já deveria ter aprendido a lidar com as diferenças religiosas, políticas, nacionais e raciais, que marcam a sua história. Revalorizar o melhor do Iluminismo, como Rousseau. Lembrar da liberdade, claro, mas também da igualdade e da fraternidade, a tríade que compunha o lema da sua grande Revolução.
Por: Denise Rollemberg é professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense - Publicado em O Globo