Theodore Dalrymple
A luta contra a hegemonia global do dólar pode levar a uma situação muito pior
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Tanto na imprensa britânica quanto na francesa muito tem se falado recentemente, não sem certa satisfação maliciosa, sobre o declínio do dólar americano como a moeda de reserva do mundo.
Afinal, a importância do dólar americano há muito tempo é um lembrete da substituição permanente da Europa como o centro do mundo depois da Primeira Guerra Mundial.
Claro, o ressentimento causado pela dominação do dólar americano não se restringe à Europa.
Países, tanto quanto indivíduos, gozam de um status de subordinados.
E a situação do dólar como moeda de reserva é o que permite aos Estados Unidos — ao que parece, indefinidamente — gastarem mais do que podem, ou seja, consumirem mais do que produzem à custa de outras nações. Enquanto a fé no dólar durar, e não existir outra moeda de último recurso em vista, isso deve continuar acontecendo.
A hegemonia do dólar também dá — ou dava — aos Estados Unidos um imenso poder político.
De um só golpe, eles podem — ou podiam — eliminar países das linhas normais de crédito e dos meios de troca.
Mas essas sanções não são fatais para as nações que as enfrentam.
A necessidade de escapar das sanções econômicas afia e concentra a mente das pessoas, acaba com a rotina e encoraja governos sobre a necessidade de serem mais flexíveis.
A primeira vez que me dei conta disso foi em Rodésia, que era como o Zimbábue ainda era conhecido na época, cujo regime colonizador branco basicamente transformou o país em pária internacional. Graças às sanções, a eficiência do governo e uma disposição para desobedecer às regras se tornaram uma questão de sobrevivência. Onde quer que existam sanções econômicas existirão pessoas dispostas a ganhar fortunas fugindo delas, inclusive nos países que as impuseram.
Isso posto, nenhum país quer ser objeto dessas sanções, e ser vulnerável a elas é uma das razões por que muitos países desejam desdolarizar a economia mundial — ou é isso que dizem. Se isso é verdade, é outra história. Foto: Shutterstock
O Brasil não vai ficar feliz em ser dominado por um regime asiático autoritário
Tanto a China quanto o Japão têm enormes reservas de dólares, cujo valor eles certamente não querem ver sofrer uma queda súbita e dramática. Um declínio semelhante na capacidade dos Estados Unidos de pagar por importações teria um sério efeito deletério na economia mundial como um todo.
Mesmo assim, fala-se muito sobre alguma forma de moeda do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Pelo que sei, só poderia ser o yuan chinês em tudo, menos no nome; pelo menos num futuro próximo.
A ideia de os países do Brics serem uma grande família unida e feliz em sua oposição à hegemonia norte-americana é absurda. Os indianos que conheço têm medo dos chineses e não gostariam de ser dominados por eles.
Os russos também temem os chineses e estão preocupados com sua penetração na Sibéria, que já é em boa parte uma colônia econômica chinesa.
A Rússia, que costumava tratar a China com condescendência, se tornou o sócio minoritário nessa suposta parceria.
Seja qual for o resultado da guerra na Ucrânia, a inferioridade do poderio militar russo não vai passar despercebida para os indianos, que há tempos se armam com os mesmos equipamentos.
Quanto ao Brasil (ainda que eu possa estar errado), o país é culturalmente parte do Ocidente e não vai ficar feliz em ser dominado por um regime asiático autoritário. Fala-se
muito sobre alguma forma de moeda do Brics (Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O ressentimento nunca é um bom conselheiro ou motivador de políticas, mesmo quando existe uma razão genuína para ele. A condição do dólar americano como moeda de último recurso é injusta, sem dúvida, e traz vantagens imensas aos Estados Unidos que eles não merecem.
Essa é uma causa de ressentimento em muitas partes do mundo, inclusive na Europa, que ainda amarga sua destituição como potência hegemônica mundial e sua marginalização cada vez maior no globo, tudo em um doloroso contraste com sua autoimagem.
O presidente Macron pediu diversas vezes que os europeus deixassem suas pequenas diferenças de lado para obterem uma independência estratégica em relação aos Estados Unidos, de cujo poder ele se ressente, mas deseja copiar.
Mesmo assim, as diferenças culturais e políticas entre as nações e regiões europeias continuam emergindo, como água passando pela areia.
A centralização de poder na Europa que o presidente francês gostaria de estabelecer com quase toda certeza causaria uma forte reação centrífuga e em pouco tempo levaria a um conflito potencialmente desastroso — a condição historicamente normal da Europa.
Em outras palavras, a Europa não pode ser um contrapeso independente para os Estados Unidos ou a China; ela precisa escolher se aliar a um ou ao outro.
Por mais que o continente se ressinta da liderança norte-americana, e por mais incompetente ou moralmente dúbia essa liderança tantas vezes tenha provado ser, os Estados Unidos são preferíveis a qualquer outro; e na política o preferível é uma categoria muito mais importante que o bom.
Opor-se à hegemonia norte-americana, por mais injusta que ela seja, não é o suficiente para criar um mundo melhor, e é muito provável que crie um mundo pior
Entre a passividade e a fúria insensata
O ressentimento, pessoal ou em escala nacional, é uma emoção encantadora que, ainda que invariavelmente danosa, tem suas recompensas psicológicas. Primeiro, ele pode durar para sempre, ao contrário de praticamente todas as demais emoções.
Ele convence quem o sente de sua própria superioridade moral em relação àqueles que supostamente o causaram.
E reduz a necessidade de reflexão ao convencer a pessoa que se ressente de que todos os seus problemas e fracassos vêm de fora e de que, se não fossem os outros, ela teria sido brilhantemente bem-sucedida. O ressentimento permite que as pessoas sintam seu ódio em nome da própria virtude.
E propõe soluções que costumam ser piores que a situação que deveriam melhorar.
Ele coloca o foco no que é impossível, e não no que é possível, justificando assim a alternância entre a passividade e a fúria insensata.
É uma das grandes causas da autodestruição.
Existe alguém que nunca foi tentado pelo ressentimento, ou que nunca respondeu ao seu canto de sereia? Existe alguém que não tenha causa nem motivo para se ressentir (o que é uma das razões para o seu potencial de longevidade)?
Muitos países se candidataram a fazer parte da “aliança” do Brics.
É importante lembrar que uma perna não se fortalece quando fica inchada e edematosa.
Opor-se à hegemonia norte-americana, por mais injusta que ela seja, não é o suficiente para criar um mundo melhor, e é muito provável que crie um mundo pior.
Theodore
Dalrymple é pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor
de mais de 30 livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos
(publicados no Brasil pela editora É Realizações) estão A Vida na
Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome
de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com
frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New
Criterion, The Spectator e City Journal.
Theodore Dalrymple, colunista - Revista Oeste