O Globo
Quando o assunto é racismo, o Brasil sempre volta à quadra um. É preciso recomeçar de conceitos que já deveriam estar absorvidos. No debate das cotas, parecia ter havido avanço no entendimento desse problema complexo e fundador do país. Se o Brasil não vencer a discriminação que pesa sobre pretos e pardos, se não houver política de inclusão, se as empresas não abrirem suas portas, é o país que fracassará. Jamais foi um problema de um grupo de brasileiros, é de toda a nação brasileira. [incluir quando não há espaço - devido o pouco número de vagas - obriga a excluir outros, restando apenas, até mesmo por uma questão de Justiça e igualdade (determinada pela Constituição Federal) privilegiar o mérito como forma de inclusão.
Um mero ato político não pode extinguir a mais importante e justa de todas formas de seleção: a meritocracia.]
O debate do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 sobre a inclusão de estudantes pretos e pobres foi intenso e terminou com a confirmação pelo STF de que cotas raciais nas universidades federais eram constitucionais. Eu, neste espaço, defendi a adoção das cotas. Houve uma avalanche de argumentos contrários. Seria a derrota da meritocracia, seria melhor investir na educação básica, iria “criar” o racismo reverso, geraria conflitos entre os estudantes, iria nivelar por baixo a qualidade acadêmica. Nada disso.
É evidente que é preciso melhorar a educação brasileira, ninguém defende o contrário. As cotas permitiram ao país dar um passo numa longa caminhada para encontrar a si mesmo. Somos um país profundamente preto, do ponto de vista cultural e étnico. O racismo fere a natureza do país. Que julgamento de mérito pode ser feito entre um jovem de classe média que frequentou bons colégios, pré-vestibulares e cursos de inglês, e um jovem da periferia que fez seu caminho para a escola se desviando das balas? Serão julgados pela mesma régua? O jovem pobre e negro que sobreviveu para chegar na porta da universidade tem resiliência, hoje uma das habilidades mais valiosas na visão dos educadores. A convivência de diferentes entre si fez bem a todos. As universidades puderam dar aos alunos uma ampliação da visão das várias realidades do país e entregar ao mercado de trabalho jovens qualificados e com experiências diversas.
Na impactante entrevista que concedeu a Ronaldo Lemos, no evento Cidadão Global, do “Valor” e Santander, a atriz Viola Davis explicou o drama que leva tantos a morrer sem que possam realizar suas possibilidades. “Se não há oportunidade, você é invisível. Vou dizer de novo, se não há oportunidade, ou acesso a oportunidades, você é invisível. Não importa o quanto você trabalha, o quanto você é talentoso, você é invisível se não houver um veículo para literalmente demonstrar o seu talento, sua inteligência e o seu potencial.” [utilizar cotas raciais para dar oportunidades é o mais injusto e o maior fomentador da desigualdade - sendo inarredável a consequência que o desprezo do mérito, apresenta o risco de na continuidade do processo seletivo se chegar a um ponto em que o conhecimento - que tem no mérito a melhor forma de ser adquirido e provado - se torna insubstituível. Como ficamos? Continuar a desprezar o mérito é impossível.]
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Quando o Magazine Luiza tomou a decisão de abrir uma seleção exclusiva para negros provocou uma reação em que as velhas teses reapareceram. E o debate foi retomado como se não tivesse acontecido há quase duas décadas. [determinar 100% das vagas para negros, ou para amarelos, ou para indígenas, é tão racista, tão criminoso, quanto determinar 100% das vagas para brancos.]
O Brasil muda muito devagar. A banqueira Cristina Junqueira, do Nubank, repetiu os argumentos de sempre. “Não consigo contratar executivos negros.” E ofendeu como sempre. “Não pode nivelar por baixo.” Depois ela pediu desculpas. Tomara que reflita sobre esse episódio. Em outra frase infeliz que revela preconceito classista, o banqueiro Guilherme Benchimol, da XP, disse em maio que o Brasil estava bem. “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, a classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo.” Cristina e Guilherme são o que há de novo no mundo do capital. E ainda não entenderam o Brasil.
Míriam Leitão - O Globo - Alvaro Gribel, São Paulo