O Globo
A crise pode levar ao aumento da dívida pública. Não há soluções fáceis. Mas o importante é preservar vidas
A eficácia do distanciamento social requer que se fechem as atividades não essenciais. Algumas pessoas conseguem trabalhar à distância, mas a maior parte não. Forçosamente desempregadas, elas deixam de produzir bens e serviços para o resto da população e renda para si mesmas. Sem renda, diminuem sua demanda por bens e serviços, ampliando o desemprego.
Ao cerrarem suas portas, as empresas reduzem não só os empregos que oferecem mas também aqueles das empresas que fornecem bens e serviços para elas. Também assim se amplia o desemprego. A queda da produção é grande. Quando os números estiverem disponíveis, possivelmente revelarão uma queda do PIB como nunca antes na história moderna, no Brasil e no resto do mundo.
A queda do PIB é fruto do distanciamento social, necessário para salvar vidas. Por penosa que seja a atual fase, lembremos:
a crise é passageira e, para a maior parte da população, alguma normalidade deverá estar de volta no segundo semestre.
O Tesouro Nacional e o Banco Central, juntos, dispõem dos instrumentos (ou estão deles sendo dotados pelo Congresso Nacional) para vencer esses desafios.
Não se trata de expandir gastos para aumentar a demanda de bens e serviços, como nas grandes recessões de 1930-33 e de 2008-09. Na origem da atual contração não está a falta de demanda como nesses dois casos, embora a queda da produção possa ser ainda maior.
Não adianta querer aumentar a demanda, se a oferta não pode reagir. É preciso manter pessoas e empresas vivas e saudáveis para voltarem a trabalhar quando o vírus estiver sob controle.
O custo de manter a economia em pé vai ser enorme. O aumento das transferências de recursos para as pessoas e empresas terá que compensar uma queda inaudita de renda nesses meses críticos. A expansão das despesas do governo ocorrerá ao mesmo tempo em que a arrecadação de impostos estará caindo.
Em consequência, a dívida pública — os títulos que o governo emite para financiar o excesso de gastos sobre as receitas — dará um salto em relação a seus valores no início do ano.
Assustados com esse salto, alguns têm proposto que, em vez de aumentar a dívida emitindo novos títulos, o governo deve imprimir dinheiro para pagar a conta. Como isso funcionaria? O Tesouro Nacional detém uma conta de depósitos no Banco Central, a qual tem um saldo positivo muito significativo.
Se o Tesouro decidir não aumentar sua dívida pode simplesmente sacar recursos dessa conta para pagar suas despesas. Dessa forma, o governo estará imprimindo dinheiro em vez de emitir dívida.
Ocorre, entretanto, que, quando o dinheiro adicional passa a circular no mercado financeiro, a taxa de juros dos títulos preexistentes se reduz, pois o excesso de dinheiro em circulação aumenta a demanda por esses títulos. Por exemplo, suponha um título de R$ 100 que promete pagar R$ 4 ao ano de juros. A taxa de juros é 4%. Quando há mais dinheiro querendo comprar o título, o preço dele sobe para, digamos, R$ 110, mas os juros continuam em R$ 4 ao ano, ou seja, a taxa de juros cai para 4/110 = 3,6%.
Dessa forma, absorve de volta o dinheiro extra que o Tesouro colocou em circulação. O Banco Central faz essa venda até que a taxa de juros volte para 3,75% ao ano. Ou seja, até que o aumento da oferta de “compromissadas” corresponda integralmente à emissão de dinheiro anteriormente feita pelo Tesouro.
No final das contas, a dívida do Tesouro em mercado diminui, mas a do Banco Central aumenta. O custo para o governo como um todo é o mesmo, só que o devedor agora é o Banco Central, e não o Tesouro. No atual regime de política monetária, tanto faz que o Tesouro emita títulos ou dinheiro para financiar os gastos adicionais.
Pessoas que entendem essa lógica defendem, entretanto, que o Banco Central deixe a taxa de juros cair, não vendendo as “compromissadas”. Nesse caso, a quantidade de dinheiro de fato aumentaria, assim como cairia a taxa de juros.
Um deles é que o dinheiro sobrante no mercado financeiro se destine à compra de bens e serviços. Como a disponibilidade desses bens e serviços está restrita pela política de distanciamento social, os preços podem subir, causando inflação. Talvez seja um custo suportável, se não durar muito tempo. Mas esse não é o principal problema.
O risco mais importante é que os detentores do dinheiro excedente queiram tirá-lo do país, em busca de investimentos mais seguros no exterior. Pois os juros agora mais baixos não compensariam deixar o dinheiro no Brasil. Haveria um aumento da demanda por dólares, que teria como consequência uma desvalorização do Real em relação ao dólar.
O Banco Central poderia evitar essa desvalorização, vendendo reservas internacionais que tem em sua carteira. Mas por que gastar reservas para dar saída para os endinheirados que querem deixar o país? Melhor permitir que o Real se desvalorize.
Presidente do Itaú: 'Falta ao governo um administrador da crise'
É possível que esse movimento não vá longe, pois um Real desvalorizado favorece as exportações e encarece as importações e, portanto, aumenta a quantidade de dólares que entra no país pela via do comércio.
Porém, se for muito pronunciada, a desvalorização do Real pode aumentar os preços internos de forma importante, arriscando gerar uma espiral de preços e salários descontrolada. Já vimos essa história antes de 1994, para que repeti-la?
Por um lado, um aumento da dívida pública pode sufocar as contas do governo. Por outro, a emissão de dinheiro pode fazer o câmbio e a inflação saírem de controle. Não há saídas fáceis. Mas já enfrentamos problemas econômicos graves como este no passado e soubemos lidar com eles. Confiemos que agora também vamos ter essa sapiência. Não saia de casa. É importante preservar vidas.
Edmar Bacha, ex-presidente do Banco Central - O Globo