Ministério Público na mira - Marcus André Melo
A coalizão que empoderou as instituições de controle em 1988 deu lugar a uma aliança maldita
A Constituição de 1988 delegou vastos poderes às instituições de controle em sentido amplo (Ministério Público, órgãos judiciais, tribunais de contas, política federal). Esta delegação foi produto da coalizão forjada na constituinte entre setores liberais e de esquerda. Os setores liberais estavam preocupados com o abuso de poder pelo Executivo para o qual também ocorrera extensa delegação de poderes através de instrumentos como medidas provisórias, iniciativa legal exclusiva, e prerrogativas processuais.
Buscava-se uma coleira forte para um cachorro grande: uma agenda de transformação institucional discutida na década de 50 por figuras como Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Hermes Lima.
Os setores de esquerda, por sua dura experiência sob o regime militar, priorizavam direitos humanos e liberdades públicas. Os limites da intervenção estatal era o foco de setores liberais desde o Estado Novo, o que levou à aprovação, em 1950, de nossa primeira Lei de Improbidade Administrativa.
Parte do arranjo de 1988 está sob ataque na PEC do CNMP (05/21). Mas agora o “jogo da delegação” é outro: mudam os atores, as coalizões, as temáticas. Destaco seis pontos:
1. Setores da esquerda agora estão aliados ao Executivo para enfraquecer as instituições de controle, porque quando estavam no poder seus desmandos foram punidos.
2. O fantasma do autoritarismo, sob Bolsonaro, voltou a adquirir a centralidade que tivera com o fim do Estado Novo e do regime militar, e que havia desaparecido. A posição dos setores da esquerda torna-se assim paradoxal: aliar-se ao presidente e sua base e simultaneamente buscar controlá-lo através do STF.
3. O presidente é agora protagonista; no jogo das constituintes de 1946 e de 1988, o Executivo estava virtualmente ausente.
4. A questão da corrupção adquiriu grande saliência, o que não ocorreu em 1988. O tema é ortogonal à agenda institucional anterior marcada pelo par direitos humanos e abuso presidencial; o que junto com o tema dos desmandos na pandemia reconfigura o jogo.
5. Finalmente, o objeto do controle ampliou-se: de desmandos do Poder Executivo para os dos próprios parlamentares —o que explica o protagonismo destes no ataque ao Ministério Público.
6. No entanto, as instituições agora com mais musculatura, podem proteger-se; o teste será como o STF irá atuar no caso.
A delegação de poderes ocorrida em 1988 fundava-se, em parte, na constatação dos limites estreitos do controle pela via parlamentar (ex.: CPIs), dado sua vulnerabilidade histórica frente ao Executivo. A PEC vai na direção contrária: aumenta o papel do Legislativo no processo. A investida insere-se em um processo mais amplo; encontrará forte resistência.
Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
PEC 5: a ira vingativa dos corruptos - Catarina Rochamonte
A resistência de sociedade e parlamentares que defendem o Ministério Público será testada ante o projeto indecoroso de Paulo Teixeira
A tentativa de submeter o Ministério Público ao controle de políticos, aleivosia posta em curso na Câmara Federal, mostra o grau de confiança a que chegaram no Brasil aqueles que combatem o combate à corrupção.
Apelidada de “PEC da vingança” —devido à evidente intenção de retaliação nela contida—, a PEC 5/2021 fere a independência e a autonomia institucional ao aumentar a ingerência política no CNMP. O corregedor, responsável pela condução de processos disciplinares contra promotores e procuradores, passaria a ter fortes vínculos políticos, consolidando com isso a cultura de impunidade dos poderosos que sempre vigorou no Brasil, embora tenha sido excepcionalmente confrontada pela Operação Lava Jato.
O autor do indecoroso projeto é o deputado petista Paulo Teixeira, com aval monolítico do seu partido. O centrão, através do presidente da Câmara, Arthur Lira, está no comando, dando as cartas num jogo sujo combinado com o presidente Bolsonaro. Nessa combinação, o relator da PEC, deputado Paulo Magalhães, conseguiu piorar o que já era ruim.
Mais uma vez, bolsonaristas e petistas convergem com o habilidoso oportunismo do centrão, que tem demonstrado grande força, mas não tem projeto de poder próprio; só um plano de domínio parasitário. Com Bolsonaro reeleito ou com Lula eleito, tal parasitismo continuará a ser praticado com mais conforto e tranquilidade, caso a PEC 5 seja aprovada.
A vitória dessa excrescência nas duas Casas do Congresso não é certa. Apesar do despudor com que conduz o processo —havendo, inclusive, mentido sobre um acordo com procuradores—, Arthur Lira não conseguiu liquidar logo a fatura na Câmara, tendo sido obrigado a adiar a votação para esta terça-feira (19).
O recuo no tratoraço vingativo deveu-se à resistência tanto no conjunto da sociedade civil quanto entre parlamentares que defendem a integridade do Ministério Público. Que tal resistência persista até a vitória final, que é rejeição integral dessa PEC abusiva.
Doutora em filosofia, pós-doutoranda em
direito internacional e autora do livro 'Um Olhar Liberal Conservador sobre os
Dias Atuais'