Falência do estado e índices de criminalidade em alta fazem aumentar devoção ao cavaleiro da Capadócia no Rio
São Jorge é o santo que teve sete vidas. Reza o mito que suportou as maiores torturas e que venceu até um dragão. Ele derrotou inclusive o poder da Igreja: o fato de ter sido rebaixado na década de 1960 para o terceiro escalão dos santos católicos — e reconduzido ao primeiro nível em 2000 por João Paulo II — não diminuiu a devoção à imagem do bravo militar sobre um cavalo branco.
No Rio de Janeiro, quanto mais difícil o
quadro de violência, mais pedidos são feitos a São Jorge — o Ogum nas
religiões afro no Rio. A veneração ao cavaleiro da Capadócia ganhou
força na cidade nos anos 1990, devido à insegurança. De lá para cá, ele
esteve presente em enredo de escola de samba; foi tema de novela;
estampou roupas de grife e passou definitivamente a fazer parte do mundo
da decoração. Com a crise financeira do estado e os índices de
criminalidade galopantes, esse culto ao santo guerreiro — que não baixou
a cabeça nem para o imperador romano — tende a explodir. Padre Dirceu
Rigo, da Paróquia de São Jorge, em Quintino, espera receber neste
domingo um milhão de fiéis em busca de proteção.
O santo dos momentos de guerra
Festa em Quintino deve receber mais de 1 milhão de pessoas este ano - Márcia Foletto / Agência O Globo
O cavaleiro do Império, por ser cristão, era um subversivo. Na narrativa desenvolvida depois pela Igreja, ele, por não negar suas convicções ao ser questionado pelo imperador, acabou preso. Sucumbiu apenas depois de ser chamado pelo Senhor. A professora Georgina Silva dos Santos, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), carrega sempre com ela um anel de ouro com o santo. Seu nome é uma homenagem ao próprio: seu pai, Jorge, nasceu no dia 23 de abril de 1914 e era da Irmandade de São Jorge. Ela também é do dia 23, só que de junho. Georgina é devota desde o berço e, quando foi fazer doutorado na USP, buscou a explicação histórica para o que sentia e via ao seu redor. Ela lembra que, na infância, essa devoção a São Jorge não era muito diferente da dedicada a outros santos, como a São Sebastião, padroeiro da cidade.
O guerreiro ganha vulto em momentos críticos do Rio: — Essa devoção tem um pico por causa dos índices de violência altíssimos. As pessoas acabam evocando o santo para proteger a cidade. Em que medida essa devoção contribuiu para diminuir a violência, não sabemos. Mas, na dúvida, é melhor pedir — acredita a historiadora, explicando. — Na minha infância tinha festa para São Jorge nas igrejas como havia para Nossa Senhora das Graças, para Santo Antônio... Não era essa coisa pop. A sociedade fala dos seus medos, das suas angústias por trás de certos cultos. No Rio, a segurança é algo que aflige a todos, desde o mais humilde ao mais rico. Ninguém está imune a bala perdida, e hoje se mata por uma bicicleta. A invocação do São Jorge é, no fundo, a declaração de que estamos vivendo um conflito armado. A incompetência dos gestores em se dar conta disso faz com que se apele a uma outra instância, muito superior, para que ela consiga interferir na realidade objetiva.
Entre os lusitanos, os surtos de devoção se dão, tradicionalmente, em períodos de guerra. O primeiro foi no século XIV, quando Portugal derrotou a Espanha numa batalha pelo poder do reino. Com um exército minguado, o condestado (chefe militar da época) fez promessa a São Jorge. Tudo leva a crer que a oração foi forte: com a vitória, o santo ganhou papel de destaque na monarquia, e começou a fazer parte das procissões de Corpus Christi. No Rio colonial, sua imagem tinha grande apelo. Padroeiro da Dinastia de Bragança, durante o Império era venerado pela Corte e, nas romarias, sua imagem era acompanhada por 23 cavalos e saudada com tiros de canhão. Em sinal de humildade, o imperador descobria a cabeça na passagem do santo que lembra um príncipe. — O evento daquela época equivale ao que seria hoje os desfiles de escola de samba, em termos de aparato e acontecimento — diz Georgina. — A comoção vista hoje se aproxima da ocorrida na época do Império.
Ligado aos ofícios de ferro e fogo — como ferreiros, espadeiros, armeiros e mesmo barbeiros, considerados essenciais ao funcionamento do exército —, São Jorge tinha esses profissionais na formação da sua irmandade no Rio. A mistura com as religiões de raiz afro nasce da relação desses homens e sua mão de obra escrava. Além disso, meninos negros vestidos pela irmandade acompanhavam a procissão ao lado da imagem.
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