J. R. Guzzo
Quando alguém diz que a presença livre e pacífica de multidões na rua é um ato “antidemocrático”, é esse alguém, e não você, quem está com um problema severo de rompimento com a realidade
Foi comum durante o Dia 7 de Setembro, e vem sendo cada vez mais comum no noticiário político: as imagens mostram a realidade — aliás, a única realidade que existe —, e os jornalistas dizem o contrário daquilo que o público está vendo. Todo mundo viu, é claro, que a mídia brasileira tida como “importante” se afundou num colapso nervoso incontrolável desde que os fatos começaram a mostrar que o povo estava a caminho de forrar a Paulista, a Esplanada dos Ministérios e a Praia de Copacabana, entre muitos outros lugares, com uma manifestação gigante de massas.
Os jornalistas que acompanharam o episódio já tinham decidido que seria o contrário; só estavam preparados para dizer que os atos pró-Bolsonaro seriam um fracasso fatal para o presidente, que o povo estava na praia, que haveria mortes e sabe lá Deus quantos horrores mais. Quando aconteceu o oposto do que já tinham decidido que iria acontecer, seus circuitos mentais cederam e a cobertura entrou em pane. Não havia um plano “B”. O plano “B” que lhes ocorreu foi radicalizar o plano “A”.
É como se a imprensa, no Brasil, estivesse tentando tornar-se um grande Pravda
Na mesma linha de militância, publicou-se uma foto da Avenida Paulista lotada de manifestantes de verde e amarelo, no dia 7 de Setembro, com os seguintes dizeres: “Milhares se manifestam contra Bolsonaro na Avenida Paulista”. Outra foto, agora da minúscula manifestação contra os “atos antidemocráticos” e contra o presidente, com bandeira vermelha e tudo, ia na direção exatamente oposta: “Manifestantes dão apoio a Bolsonaro”. Analistas políticos, falando enquanto a televisão mostrava as imagens aéreas da multidão em São Paulo, diziam que “os índices de popularidade de Bolsonaro nunca foram tão baixos”. O que aquela gente toda estava fazendo na rua, então? É um caso evidente, mais um, em que a mídia substitui a realidade registrada em público, com vídeo e áudio, pelos comunicados do Datafolha. Outro recurso, utilizado do começo ao fim da cobertura, foi dizer que o número de manifestantes era “muito inferior” ao que Bolsonaro esperava — ou seja, a multidão que o sujeito estava vendo à sua frente (ou ao seu lado, para os que foram à rua) era a prova de “um fracasso”.
Imagem publicada no Instagram do jornal O Estado de S. Paulo no dia 12 de setembro, quando aconteceram as manifestações contra o presidente Jair Bolsonaro:
Imagens disponíveis para venda no banco de imagens do Estadão Conteúdo, com fotografias sobre as manifestações dos dias 7 e 12 de setembro:
A coisa foi por aí afora — uma coleção, exibida horas a fio, de afirmações desconexas, falsificação maciça de fatos, momentos de histeria e, do começo ao fim, puro e simples rancor em estado sólido. Tudo bem, é claro, se essas coisas são feitas pelo departamento de propaganda Lula-PT, ou por militantes da “terceira via” e de outras bobagens parecidas — política é assim mesmo, um ringue de terceira classe onde qualquer golpe sujo está sempre valendo. Mas o noticiário da imprensa não é, em nenhuma democracia, uma atividade política — isso é coisa de ditadura com jornal único. De órgãos de comunicação em regimes livres esperam-se conduta, regras e procedimentos de quem se compromete com a fé pública — e não o que está sendo feito na mídia brasileira de hoje, em que a militância política aberta passou a ser vista como um direito, ou mesmo um dever do jornalista.
A mídia brasileira pode estar sendo apenas um espelho de si própria
Essas dúvidas abrem a oportunidade de pensar em algo muito interessante: e se esse todo mundo não for mesmo todo o mundo? Ou, em outras palavras: e se forem eles, e não você, que estão na minoria? Nesse caso quem está isolada é a imprensa. Junto com o mundinho dos intelectuais e artistas, dos “especialistas” que dão 100% das entrevistas sobre qualquer assunto, de transgêneros a queimadas na Amazônia, e dos cientistas sociais, políticos e de todos os tipos que aparecem nas mesas-redondas depois do horário nobre, a mídia brasileira pode estar sendo apenas um espelho de si própria, e não da realidade.
O fato, indiscutível, é que as ruas do Brasil foram tomadas por centenas de milhares de pessoas no dia 7 de Setembro — no exato momento em que os meios de comunicação e o seu entorno estão dizendo que as manifestações são um fracasso, ou, pior ainda, um “erro”. Da mesma forma, os protestos contra Bolsonaro e a favor do STF e do “Estado de direito” foram uma humilhação para quem tomou parte nelas, a começar pelos quatro, cinco ou seis “candidatáveis” (tanto faz) que participaram do fiasco. Não é o cidadão, aí, quem está falando sozinho.
As manifestações de 7 de Setembro serviram, talvez mais que qualquer outra coisa, para devolver aos brasileiros comuns a confiança em sua própria cabeça. Quando alguém diz que a presença livre, espontânea e pacífica de multidões maciças na rua é um ato “antidemocrático”, é esse alguém, e não você, quem está com um problema severo de rompimento com a realidade. Pense nisso.
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J. R. Guzzo, colunista - Revista Oeste