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domingo, 22 de setembro de 2019

O programão na fila e a galinha na UTI - Rolf Kuntz

O Estado de S.Paulo

Para um crescimento econômico mais veloz e sustentável será preciso investir muito mais

Passar a noite numa fila, em busca de senha para um mutirão do emprego, tem sido um dos grandes programas boêmios de São Paulo. Nenhum outro tem atraído tantos milhares de pessoas. Num dos últimos, 4 mil sortudos conseguiram senhas para entrevistas. Na tevê sempre aparecem figuras animadas e até sorridentes, contratadas poucos minutos antes ou com esperança de sucesso na próxima tentativa. Com tanta gente entusiasmada, deve ser uma experiência boa. O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia deveriam experimentar. No auge do entusiasmo, poderiam ter um surto de iluminação, como Saulo de Tarso num tombo, e perguntar-se: 
1) Como essas pessoas sobrevivem? 
2) Até quando poderão sobreviver sem trabalho? 
3) Onde surgirão os empregos, se as vendas continuarem fracas? 
4) Com pouca demanda final, como poderá reagir a indústria, já enfiada num buraco tão fundo? [as perguntas apresentadas são extremamente oportunas e deveriam ser objeto da atenção de parte da imprensa, dos presidentes da Câmara e do Senado, do STF e de mais alguns que parecem ter um prazer especial em atrapalhar o esforço do Presidente Bolsonaro em solucionar os problemas da República da qual é o Presidente - eleito pelo voto popular, em eleições livres e democráticas.]

São perguntas básicas, essenciais, e, no entanto, desprezadas pelo presidente, pela maior parte de sua equipe econômica e até por boa parte dos economistas do setor financeiro e das consultorias. As análises têm-se concentrado, na maior parte, em obviedades conhecidas há muito tempo, repetidas por instituições internacionais e já incluídas no repertório de jornalistas iniciantes. Para um crescimento econômico mais veloz e sustentável será preciso investir muito mais, cuidar da infraestrutura, reformar a tributação, eliminar entraves burocráticos, aumentar a segurança jurídica e – detalhe nem sempre lembrado – ampliar a oferta de capital humano bem preparado.

Cada um desses itens comporta muitos detalhes, como redução de vinculações orçamentárias, ganhos de eficiência na gestão pública, valorização dos professores, eliminação da guerra fiscal entre Estados, maior abertura comercial, maior inserção nas cadeias globais de produção e um monte de etcéteras. Os amantes do lugar-comum poderão adicionar uma frase contra a tentação de produzir um voo de galinha.

Mas um voo de galinha depende pelo menos de uma galinha capaz de algum impulso. Nem disso se pode falar no Brasil neste momento. Depois da recessão, a economia cresceu 1,1% em 2017, repetiu esse resultado em 2018 e hoje nem se pode dizer se crescerá 1% em 2019. Avançará 0,87%, se estiver certa a mediana das expectativas de mercado publicadas na segunda-feira (16/9). A última estimativa do governo é ligeiramente mais modesta, 0,85%. Fica por aí, em 0,8%, a nova projeção divulgada pela OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

A ambição mais modesta, neste momento, nem é fazer a galinha voar. É tirá-la da UTI. Todos os prognósticos são muito ruins. No Brasil, a projeção de crescimento em 2020 chegou a 2%. Uma semana antes ainda estava em 2,07%, um número já miserável. A previsão da OCDE caiu de 2,3% em maio para 1,7% na reavaliação concluída em setembro. Nas tabelas desses dois anos o Brasil aparece com um dos piores desempenhos do mundo. A desaceleração é global e o Brasil se mantém no último pelotão, à frente de poucos corredores. Se der alguma atenção a esses números, o presidente da República, formalmente o responsável principal pelas condições do País, poderá entender um pouco mais claramente o sentido da palavra “ociosidade”, usada com frequência em notas e atas do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC).

O “nível de ociosidade elevado”, segundo a nota da última reunião do comitê, poderá continuar empurrando a inflação para baixo da meta, fixada em 4,25% para este ano e em 4% para 2020. Traduzindo: a inflação bem comportada, um fato com vários aspectos positivos, é também sintoma de algo muito ruim. O “nível de ociosidade elevado” indica uma sobra indesejável de dois fatores, mão de obra e capital produtivo. No caso da mão de obra, o problema é sintetizado em alguns números. A última pesquisa oficial apontou 12,6 milhões de desempregados, ou 11,8% da força de trabalho. Somando a esse contingente os trabalhadores subempregados e os desalentados, chega-se a 24,7 milhões de pessoas.

No caso do capital produtivo as pesquisas são menos amplas. No entanto, bastam os números do setor industrial para mostrar um quadro assustador. Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a ociosidade está próxima de 70% da capacidade instalada. Outros levantamentos indicam números mais próximos de 25%. Em qualquer caso, o uso do capital produtivo continua bem abaixo dos padrões normais na experiência brasileira. Perguntas óbvias: por que alguém comprará máquinas e equipamentos se a empresa estiver operando com ociosidade na faixa de 25% a 30%? Poderá comprar para substituir material desgastado ou muito desatualizado, mas pensará seriamente antes de cuidar da ampliação de capacidade. Da mesma forma, por que um empregador abrirá vagas, se os negócios andam em marcha lenta e os sinais de melhora são pouco tangíveis? Tem-se falado em aumento de confiança, mas a produção de máquinas e equipamentos, apesar de alguma melhora, continua muito abaixo dos níveis pré-recessão.

Sem um impulso inicial, o investimento das empresas continuará muito fraco, bem abaixo do necessário para animar a economia e para ampliar o potencial de crescimento do País. Sem demanda, a formação de estoques permanecerá muito cautelosa, desde o varejo até os primeiros elos da cadeia produtiva. O desemprego cairá muito lentamente e, por um efeito circular, a demanda de consumo seguirá insuficiente para proporcionar um arranque aos negócios. O fim de ano poderá ser um pouco mais animado, como sempre, e falta ver os efeitos da liberação de saques do Fundo de Garantia, mas as perspectivas são pouco entusiasmantes. Nem as projeções oficiais para este ano e para o próximo indicam algo muito melhor que uma galinha ainda na UTI.
 
 Rolf Kuntz - O Estado de S. Paulo
 
 

sexta-feira, 29 de abril de 2016

José Nêumanne: O carcará e o ratinho



Renan proseia com adversários na guerra de petralhas e petistas para garantir a própria impunidade e tirar proveito político
O sobrenome Calheiros tornou-se notório no noticiário policial dos telejornais no começo dos anos 1980, mercê do conflito sanguinário iniciado com a morte de Henrique Omena, cabo violento da truculenta PM alagoana. O prenome Renan, em homenagem ao grande historiador francês das origens do cristianismo, ganhou mais notoriedade ainda depois que os tiroteios cessaram, talvez, quem sabe, por escassez de vivos a tocaiar.

Tudo isso se passou à sombra do alagoano nascido no Rio de Janeiro Fernando Affonso Collor de Mello, quando este, dito “Carcará Sanguinolento”, foi eleito presidente da República no fim daquele mesmo decênio. Tendo o já então ex-chefe sido deposto, contudo, o antigo faz-tudo estava fora do bando, servindo a outras bandas da política pelas mãos de Zé de Ribamar, dito Sarney, maestro da velha UDN, da Arena da ditadura e do PMDB da resistência. E lá foi Renan ser ministro da Justiça do tucano Fernando Henrique Cardoso e presidente do Senado pelo PMDB, na base de apoio de Lula e Dilma Rousseff, aos quais serviu com astúcia, eficiência e sucesso. Teve de renunciar à presidência do Senado, ao protagonizar escândalo em que foi acusado de receber propina de empreiteira para sustentar uma filha e a mãe dela numa relação fora do casamento.
 
Mas ele voltou por cima e neste momento preside o julgamento do impeachment da quase ex-presidente Dilma, posando de varão de Plutarco, mesmo assentado em nove processos sob a égide do procurador-geral da República, Rodrigo Janot cuja recondução ao cargo foi providenciada por ele no Senado – e do Supremo Tribunal Federal (STF). Não é pouco, mas até agora não lhe causou grande mossa. Afinal, Dilma, alvo do rumoroso processo, ainda hoje trata como inimigo o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do mesmo partido de Renan e como ele egresso da base governista. Ainda que a Casa tenha decidido por acachapante votação mandar o processo direto para o colo do solícito anjo da guarda das pretensões de permanência da madama chefona.

Faz tempo que o rebento dos Calheiros, acusados de terem mandado matar o advogado e político Tobias Granja, está a merecer o título de Carcará Sanguinolento. Pois viu o ex-patrão reduzir-se a insignificante ratinho domesticado. De posse da paróquia de São Gregório, por ter consagrado no Congresso a prática de perder mais tempo discutindo prazos do que se inteirando de acusações e provas, fazendo-o vassalo do calendário gregoriano, tornou-se o grande Inquisidor. Em suas mãos repousa o poder de acender a fogueira para incinerar o desastrado desgoverno dilmolulopetiista. Foi assim que o pai do atual governador de Alagoas, chamado de Renan Filho como convém numa oligarquia nordestina, e eleito sob a sombra paterna e em pleno gozo da herança de abundância da água fresca até no sertão, tornou-se o negociador-mor da República. “O diálogo”, diz ele, “fortalece a democracia”. Renan não é definitivamente um fofo?

Em vez de se ater a fatos e a autos, Sua Excelência passeia pelo Eixo Monumental de Brasília a se reunir com gregos e baianos para produzir o consenso da paz dos cemitérios, em que se enterram empregos e negócios, também denominador comum do qual ele espera tirar proveito político. Principalmente uma anistia por serviços prestados em todos os delitos dos quais é acusado. Renan não privilegiou lado algum: conversou com a presidente prestes a ser processada, com o vice-presidente pronto para ser empossado e com o colega do clã de São João del Rey, na Minas histórica, que ora preside o tucanato emplumado. 

E essa empalhada empulhação com cara de conciliação nacional na hora da crise e do pugilato teria de começar por um colega de prontuários. O tribuno que chefia a Mesa do Congresso Nacional trocou afagos públicos com Luiz Inácio Lula da Silva. Este é apontado em nota oficial da força-tarefa da popular e impiedosa Operação Lava Jato como um dos “principais beneficiários” da roubalheira que levou a Petrobras à lona e o Brasil às cordas. Foi o encontro do profeta da fome com o faquir da vontade de comer. Ambos, não por acaso, desejam o mesmo fim inglório para a república de Curitiba, chefiada pelo juiz que virou herói no império capitalista pelas páginas do semanário cujo nome significa o tempo todo: Time.

Da conversa de investigados pela polícia e pela Justiça escapoliram cochichos inconfidentes, como a de que Lula flertou com o desvio da Constituição representado pela antecipação de eleições. Mas foi lá mesmo para se alistar como voluntário na empreitada pacificadora de nosso moderno Bernardo de Vasconcelos no interregno entre Primeiro e Segundo Impérios, além de herdeiro de Tancredo Neves, fundador da Nova República, no enterro da ditadura militar. Pouco importa, se no dia anterior àquele em que o ex-líder sindical fumou com ele o cachimbo da paz, o ex-presidente tinha chamado os deputados federais de quadrilheiros que formaram um pelotão de fuzilamento para estraçalhar a tiros de fuzil a Constituição da República. 

Ensurdecido pelas balas cruzadas entre Omenas e Calheiros ou pela guerra sem quartel de coxinhas contra petralhas, o julgador-mor do destino da Nação no crítico momento presente só tem ouvidos para o bem. Só por isso não percebeu que o interlocutor e sua afilhada, objeto principal do julgamento que comanda, há muito abandonaram tolas veleidades da madureza na defesa da velha e boa democracia burguesa, sob cujo governo o Estado Democrático de Direito se mantém hígido, embora enxovalhado em nossa velha Pindorama de guerra.  

O xará do grande biógrafo de Saulo de Tarso já garantiu que vai antecipar a presença do presidente do STF, Ricardo Lewandowski, seu parceiro no sindicato dos solícitos dos poderosos que estão sendo destronados, para garantir segurança jurídica à decisão a ser tomada pelos 81 senadores. O pior de tudo é que não dá sequer para desconfiar se esta é uma boa providência ou apenas um jeito de o filho de Murici, onde aprendeu muito bem a não deixar que os outros saibam de si, entregar o trapézio a um partner que desperta tanta credibilidade quanto ele próprio. E vai em frente o espetáculo mambembe em que a plateia é atraída pelo cuspe do ator global Zé de Abreu e pela abundância muscular dos glúteos e do silicone que segura as glândulas mamárias da Miss Bumbum da EsplanadaE Rainha da Xepa do desgoverno que desmancha no ar podre sem nunca ter sido sólido antes.

Publicado no blog de José Nêumanne