Governantes não têm o privilégio do mistério. Os governados é que têm o direito à transparência
[ações de busca de informações para planejamento de ações de segurança, notadamente manifestações de rua com grande potencial de desordem, passam a ser espionagem?
A prosperar tal classificação em breve todo estado terá que apresentar com antecedência, em horário pré-definido, todas as operação policiais que realizará nas próximas 24 horas.
Só os que preferem dizer que não sabem, é que são capazes de considerar antifascistas, os fascistas camuflados de antifascistas, como perfeitos 'antifas.]
É notável o esforço do governo Jair Bolsonaro para impor mistério sobre
as próprias ações, atropelando a legislação e os sistemas instituídos
que garantem à sociedade plena visibilidade às decisões de Estado e aos
atos dos agentes públicos.
Assiste-se, agora, a nova tentativa de legitimar uma inaceitável
“democracia da ignorância”, na adequada definição introduzida pela
ministra Cármen Lúcia no léxico do Supremo. O governo entra em rota de
colisão com o STF e com o Congresso, ao se recusar a dar transparência
devida no caso da suspeita de espionagem no Ministério da Justiça sobre
um grupo de 579 servidores públicos. A insistência no sigilo confronta o modo republicano de administrar o
Estado e o direito ao escrutínio social. Mais grave é que, desta vez, o
governo exibe desconfiança no Supremo.
Em resposta à ordem da Corte para apresentação de documentos, relevantes
para esclarecer a suspeita de espionagem, o Ministério da Justiça
alegou que “a mera possibilidade” de exame das suas informações “por
outros atores internos da República — ainda que, em princípio,
circunscrito ao âmbito do STF — já constitui circunstância apta a tisnar
a reputação internacional do país”. Absurdo. [para saber se o assunto se ficará circunscrito ao STF ou ampla divulgação, basta observar a publicidade da reunião realizada em abril 2020 - reunião de Estado e cuja previsão era permanecer secreta.]
Acrescentou que “no cenário interno, não seria menos catastrófico abrir o
acesso ao Judiciário a relatórios de inteligência”. Instou o Supremo à
“parcimônia”, “sensibilidade” e “autocontenção”, sugerindo deixar o caso
com o Legislativo, onde nasceu o recurso ao STF. Aparentemente, o órgão
chefiado pelo ministro André Mendonça se vê como instância superior à
autoridade constitucional.
Na quarta-feira, noutro processo, o Supremo estabeleceu limites à
Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Relatora do caso, a ministra
Cármen Lúcia lembrou: “Arapongagem é crime. Praticado pelo Estado, é
ilícito gravíssimo”. A lógica autoritária tem sido constante no governo. Logo depois da
posse, servidores comissionados foram autorizados a classificar
documentos como secretos e ultrassecretos. O Congresso revogou o
decreto.
Na sequência, houve recusa na divulgação de estudos que fundamentavam a
reforma da Previdência. O Legislativo reagiu. O atropelo segue na
prática cotidiana de desidratação da Lei de Acesso à Informação. Neste ano, o presidente chegou a editar Medida Provisória interrompendo
requisições de informação aos ministérios. O STF suspendeu a MP. Em
maio, o presidente explicitou sua relutância em cumprir ordem do STF
para entregar os registros de uma reunião ministerial e resistiu a
divulgar laudos de seus próprios exames para Covid-19. A Constituição não permite aos governantes o privilégio do mistério. Ao
contrário, garante aos governados o direito de saber como o Estado é
administrado. O Ministério da Justiça está sob suspeita de espionagem
política. O STF tem o dever de esclarecer se houve, ou não, um
gravíssimo delito constitucional.
Editorial - O Globo