Por Míriam
Leitão
A
ministra Cármen Lúcia me disse em entrevista que as Forças Armadas não são o
poder moderador (que o presidente Bolsonaro tem dito) porque não são sequer um
poder. Os poderes são, lembrou, Legislativo, Executivo e Judiciário. “Não
existe quarto poder”. Disse ainda que tem sido muito difícil, mas é
imprescindível buscar a superação da crise entre os poderes, porque a "sociedade
não pode viver com essa audição permanente de xingamentos, de afrontas, de
desatendimento à harmonia que é exigência constitucional”.
PGR impediu análise de prisão de Roberto Jefferson pela
Justiça Federal no ano passado
Segundo a
ministra que deu o famoso voto “cala a boca já morreu”. não existe conflito
entre liberdade de expressão e o combate às fake news, porque a garantia da
liberdade não protege o crime. Sobre a ameaça do presidente Bolsonaro de pedir
o impeachment de ministros do Supremo, ela disse que “todo cidadão tem o
direito de representar contra os agentes públicos”, por isso não iria se
manifestar porque caberá ao Senado “dar cumprimento às leis da República”. Os
trechos mais importantes da entrevista, eu comento aqui:
– Não
existe conflito entre liberdade de expressão e combate às fake news. Tenho
visto quem confunde manifestações grosseiras, incivis e delituosas como o
exercício. O objeto do direito é a liberdade que se manifesta pela expressão. O
direito protege todos as formas de liberdade. A expressão pode ser o exercício
da liberdade, mas pode também ser objeto de um crime contra outro. Isso se dá
também com o direito de ir e vir, em determinados momentos o estado tem que
impedir esse direito de locomoção porque a pessoa está pagando uma pena de
reclusão. Nunca foi posto em questão a ideia de que a pessoa presa fere o
direito de ir e vir. A pessoa não pode entrar na contramão só porque ela está
com vontade e atropelar alguém. Uma pessoa pode não gostar do seu trabalho ( de
jornalista), mas não pode em nome disso caluniar você. Isso é prática delituosa
e não prática de liberdade.
Ela
lembrou que a nossa geração, minha e dela, viveu o oposto da democracia e sabe
como é ruim: Nós
vivemos período de absoluta ausência de liberdade e sabíamos que éramos
infelizes. Quem prega contra o estado democrático e as instituições
democráticas tem na própria constituição a tipificação de crime. A Constituição
definiu que são crimes inafiançáveis e imprescritíveis a ação de grupos armados
contra as instituições democráticas.
Perguntei
sobre o golpismo implícito na declaração do líder do governo na Câmara, Ricardo
Barros, de que teremos que esperar o ano que vem para ver se Bolsonaro vai
respeitar as eleições. Ela respondeu o seguinte. – Há
uma constituição no Brasil, há juízes que fazem valer a Constituição no Brasil,
quando alguém queira colocar em risco a soberania constitucional. Uma fala como
essa cria desconfiança, e a democracia vive da confiança. Até porque no final
da fala naquele cinco de outubro por Ulysses Guimarães, “essa Constituição
durará enquanto durar a democracia no Brasil. Traidor da Constituição é traidor
da Pátria”. A Constituição fala da periodicidade dos mandatos e das eleições.
Quando
perguntei sobre o fato de o próprio presidente da República ter atacado a
democracia e as eleições e por isso inclusive está sendo alvo de inquérito no
Supremo, ela repetiu a frase de que as instituições estão funcionando e que eu
havia dado exemplos exatamente da ação dos juízes, os inquéritos contra o
presidente. - Como
sou juíza, só me manifestarei sobre esses processos no momento em que tiver que
me manifestar.
Eu
insisti em saber mais sobre a opinião dela sobre a evolução dos inquéritos
contra Bolsonaro, lembrando que jornalista faz perguntas. Ela riu e disse que
as instituições precisam que a imprensa continue exercendo o seu papel. Perguntei
sobre o coronel Hélcio Bruno que fez postagens contra ela e mesmo assim ela
concedeu habeas corpus para fazer silêncio na CPI. Perguntei como ela se
sentia. Ela disse que não leva sentimentos para os processos. – Não
tenho ódios nem afetos sobre os que estão sobre a minha jurisdição. Não presto
favores a quem gosto, nem prejudico quem eu acho que tenha tentado me
prejudicar. Isso é a “impessoalidade" exigida pela Constituição.
Sobre a
crise da escalada entre os poderes e a aflição em que o país vive, ela definiu
com palavras brandas o conflito criado por Bolsonaro contra o poder judiciário.
Chamou de arrelia ou refrega, mas deu uma resposta forte. - A
desarmonia entre poderes e agentes públicos não é conveniente porque descumpre
a Constituição. Resolve-se o conflito com a convivência harmoniosa. Por
isso, o presidente Fux tentou o diálogo, para voltar ao veio natural da Constituição,
mas ele se afastou quando não teve a resposta de diálogo que ele
pretendeu. A gente sai disso superando esse conflito. O cidadão espera de
todos nós agentes públicos, prudência republicana e também moderação entre os
poderes. A superação da crise terá que ser pelo diálogo necessário e possível
entre os poderes.
Eu
perguntei se é possível diálogo com quem quer suprimir a democracia. A ministra
respondeu: – Eu acho
que é muito difícil, mas hoje há uma coesão no Supremo para que a gente garanta
a democracia. Acho que para a superação da crise tem sido a busca incessante do
Supremo e do presidente tem feito isso. Mas é muito difícil mesmo, como ele
(Fux) disse na semana passada que não estava tendo resposta para o diálogo, mas
acho imprescindível, uma sociedade não pode viver com essa audição permanente
de xingamentos, de afrontas, de desatendimento à harmonia que é exigência
constitucional. É difícil mas é imprescindível continuar insistindo para
sempre.
Perguntei
se as Forças Armadas são o poder moderador da República como tem sido o
presidente Bolsonaro. Ele respondeu que não. – Não há
poder moderador no estado brasileiro. A Constituição exige moderação de todos
nós agentes públicos. As Forças Armadas e o Exército de Caxias exerce um papel
importante, os bons integrantes desse Exército se orgulham do papel e haverão
de honrá-lo, estão no artigo 142 como instituição para a garantia da ordem
pública e pode agir por iniciativa de qualquer dos poderes. A autoridade
suprema é o presidente da República, mas no mesmo artigo que fala na garantia
da lei e da ordem estabelece que é por iniciativa de qualquer dos poderes. As
Forças Armadas ajudam enormemente a Justiça Eleitoral na época das eleições de
São Gabriel da Cachoeira a Santo Angelo no Rio Grande do Sul. Mas elas não são
um poder à parte, porque a Constituição disse quais são os poderes da
República, no artigo segundo, o Legislativo, Executivo e Judiciário. Não temos
quarto poder hoje.
Míriam Leitão, colunista - O Globo