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terça-feira, 17 de julho de 2018

O pensamento em chuteiras

Elite é nata, suprassumo. A fina flor de uma atividade. Seja qual for. O Brasil já teve uma elite futebolista. Não tem mais. E, se não mais tem, menos pensadores temos

Lamentei menos a seleção brasileira não ter avançado na Copa do que tê-la disputado — mais uma vez — sem um jogador como De Bruyne ou Pogba. Futebol não tem importância. O pensamento, sim. O futebol, esse, da Copa, nada tem a ver com a vida real — não é indicativo da qualidade de um povo. O pensamento, sim. Pensamento é distinção. O futebol brasileiro já formou grandes pensadores. Se não mais, eis um sinal. É a capacidade de formular que estabelece uma elite. Nada a ver com poder econômico ou classe social. Elite é nata, suprassumo. A fina flor de uma atividade. Seja qual for. O Brasil já teve uma elite futebolista. Não tem mais. E, se não mais tem, menos pensadores temos.

Se a presença de pensadores dentro de campo não informa sobre a existência de pensantes brasileiros em outras áreas, a falta de pensadores de chuteiras muito dirá acerca do ambiente de ideias no Brasil.  Sei que devo um aparte a Philippe Coutinho. Um craque. Seus lançamentos para os gols de Paulinho e Renato Augusto se impõem junto ao que de mais original houve na Copa. Há ideias ali. Mas foram lampejos. Não poderia ser diferente. Coutinho não é um homem livre. Dentro de campo: não é. Não julgo técnicos nacionais. São todos dungas. Operam em outro registro. Tampouco os responsabilizo se há os atletas que aceitam se limitar. Apenas escrevo que é impossível — a Coutinho ou qualquer talento de sua estirpe — ser pensador pleno, jogador livre, se encaixotado no extremo do tabuleiro. E ali, no entanto, estão — confinados pela própria finitude do campo — os nossos maiores.

Pensa-se melhor de frente. De Bruyne só é De Bruyne porque lhe é franqueada a chance de ver e medir em profundidade.  Não desmereço as posições, mas me pergunto sobre em que momento o futebol brasileiro se podou em modesto produtor de ótimos alas e pontas, de maneira mesmo que consideremos natural discutir sobre se Neymar e Marcelo podem estar no mesmo time. Oi? Engarrafamos as laterais enquanto despovoado vai o centro. É isso mesmo?

Não desqualifico Casemiro, Fernandinho e outros paulinhos. São bons. Têm carreiras sólidas. Em seus clubes, porém, jogam com outros casemiros e fernandinhos, ou dividem o meio de campo com criadores como Modric e De Bruyne? Não falo de futebol. Mas de ideias sobre o esporte. É só o que deveria interessar a quem aprecia o jogo. Casemiro e Fernandinho são muito melhores com Modric e De Bruyne. Nunca serão, contudo, Modric e De Bruyne jogando com outros casemiros e fernandinhos. Nunca serão nem o Casemiro e o Fernandinho que nos acostumamos a ver respectivamente no Real Madrid (treinado por Zidane) e no Manchester City (por Guardiola). Serão os Casemiro e Fernandinho da Copa, atrapalhados ainda pela expectativa de serem o que não podem, pela pressão de jogarem onde estiveram Gerson e Falcão, e pela precária direção de um desses mano-menezes.

Na decisão entre França e Croácia, Pogba deu um lançamento de 60 metros para Mbappé e acompanhou a jogada para, afinal, concluí-la. Primeiro, recebendo passe de Griezmann, num chute de direita; depois, no rebote, de esquerda. Um golaço. Mas o que me mobiliza aqui é o lançamento. A origem da jogada. Claro que Pogba é um fora de série. Fato também é que só será possível realizar um passe de 60 metros havendo espaço para tanto. Um lançamento de 60 metros exige pelo menos 80. Exige, pois, que aquele que o faça seja o que inicia a armação do time. Não há papel mais importante.

Se é certo que Coutinho poderia fazer o que fez Pogba, certo também é que jamais faria — jamais fará — atado onde está. Coutinho, sempre de lado, nunca tem mais que 30 metros adiante — e esse é o próprio sinônimo do subaproveitamento. Sim, existem bons zagueiros capazes de começar uma jogada. Existem também os bons fernandinhos, eficientes em fazer a bola girar. Mas que deles — a não ser que seja um Aldair, a exceção — não se espere o movimento que surpreende e desconcerta.

Quem sou eu para dar lição aos professores, mas não seria já tempo de investir novamente na formação de meias que joguem de frente, desde a própria intermediária, com livre trânsito para enxergar e conceber? Até a próxima Copa, há quatro anos — inclusive para adaptar jogadores à função. Quando surgiu, pensei que Paulo Henrique Ganso pudesse ser esse homem. Não foi. Em parte, por culpa dele; sobretudo, porém, porque jamais compreendido, porque nunca entendido e explorado o espaço que lhe deveria ser dado e defendido. Era necessário — estratégico — insistir. Preferiram rotulá-lo como lento, obsoleto, em vez de treiná-lo para recuar e tomar para si a saída de bola e a armação do jogo. Que o time se organizasse a partir dele. Tática é se armar em função do pensamento. O resto é Tite, esse Lazaroni, sonhando em treinar time europeu. 

Carlos Andreazza é editor de livros