Bloco patrocina proposta que prevê uso de decretos legislativos quando se concluir que Corte ‘extrapolou limites constitucionais’; juristas veem interferência indevida no Judiciário
A cúpula do Centrão pôs no papel uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permite aos deputados e aos senadores anularem decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), prerrogativa que o Legislativo não tem hoje. O texto ao qual o Estadão teve acesso dá ao Congresso o poder de revogar julgamentos da mais alta Corte do País sempre que a decisão judicial não for unânime e houver uma alegada extrapolação dos “limites constitucionais”.
Como a condicionante para o que pode ser revisto é abrangente, tudo o que “extrapolar limites constitucionais”, o Congresso poderia anular até mesmo condenações de políticos, bastando para isso que a sentença não tenha sido aprovada por unanimidade no STF. [e a decisão anulando a condenação de políticos seja tomada por maioria do Congresso - 60%; Lula foi descondenado por decisão monocrática do ministro Fachin que, posteriormente, foi endossada pelo plenário.]
Levantamento mostra que de janeiro de 2019 até hoje, foram 5.865 acórdãos (registro de decisões) por unanimidade no plenário do STF. No mesmo período, 2.402 foram aprovados sem votação unânime. O caso do julgamento da criminalização da homofobia, por exemplo, está na mira de deputados que patrocinam a PEC – grande parte do Centrão é da bancada evangélica. O julgamento no Supremo não foi por unanimidade – foram oito votos favoráveis.
A estratégia do Centrão que tem à frente o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e os deputados Wellington Roberto (PL-PB), Ricardo Barros (Progressistas-PR) e Marcos Pereira (Republicanos-SP) é fazer a proposta avançar depois das eleições de outubro sob o argumento de que é preciso conter o que consideram um “ativismo judicial” do Supremo. O discurso casa com o do presidente Jair Bolsonaro, crítico da atual composição da Corte, para quem o Supremo tem extrapolado suas atribuições.“É uma proposta que nós estamos chamando de ‘PEC do Equilíbrio entre os Poderes’. Quando o Supremo toma uma decisão inconstitucional, a quem você vai recorrer? Só se for a Deus”, justificou Domingos Sávio (PL-MG), destacado pelo grupo de partidos para colocar a proposta no papel. Nesta semana, ele disse que fará um “esforço concentrado” para reunir as 171 assinaturas que garantem a tramitação da proposta na Câmara.
Tese
Vice-presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, o deputado Darci de Matos (PSD-SC) endossa a tese de ativismo judicial. “É preciso que os Poderes se entendam. Essa briga, esse conflito entre os Poderes, isso tudo é ruim para o Brasil”, disse.
O primeiro passo para uma proposta tramitar na Câmara é a análise da CCJ. Membro da comissão e vice-líder do Republicanos, o deputado Lafayette de Andrada (MG) concorda. “Existe um sentimento de que muitas vezes o Supremo tem extrapolado as fronteiras da sua competência”, disse.
Inconstitucional
A reportagem apresentou o texto da proposta a constitucionalistas, que veem uma interferência indevida no Judiciário. “É uma inversão do sistema de separação de Poderes. Uma coisa é dizer que o Legislativo pode mudar a interpretação sobre a Constituição, outra coisa é transformar o Congresso numa instância revisora de decisões do Supremo. Isso pode gerar uma série de problemas jurídicos e operacionais. Como será possível aprovar um decreto para derrubar uma decisão que suspendeu [tem caráter de uma decisão temporária, sendo anulação a decisão definitiva; a lei suspensa não deixa de existir e pode ser anulada.] uma lei se a lei já deixou de existir?”, afirmou o professor de Direito Constitucional Wallace Corbo, da Fundação Getulio Vargas (FGV-Rio).
Em 2011, a bancada evangélica tentou derrubar a decisão do Supremo que reconheceu a união estável homoafetiva por meio de um decreto legislativo na Câmara, mas o projeto não foi votado justamente por não ter previsão regimental. “Hoje temos um grupo que não mobiliza maiorias qualificadas no Congresso querendo criar um fast tracking, um atalho problemático em termos de estado de direito”, disse.
Para o professor titular de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP) Elival da Silva Ramos, a PEC é inconstitucional e representa uma interferência no Poder Judiciário, ferindo a separação dos Poderes. “Isso é algo que cheira a autoritarismo, remontando a um passado nebuloso da Constituição de 1937 e que já deveria ter sido abandonado há muito tempo, não desencavado. O remédio para o ativismo judicial, na verdade, passa por uma composição equilibrada do Supremo, debate público sobre os temas e nas críticas que podem ser feitas”, disse Ramos.
Daniel Weterman, colunista - O Estado de S. Paulo