Gazeta do Povo - VOZES
Barraco de aeroporto. Quem viaja muito sabe como é. Aliás,
até quem viaja pouco tem grande chance de ter presenciado alguma constrangedora
cena de briga fortuita entre estranhos, estressados, carregados de malas… a
probabilidade aumenta se houver o envolvimento de crianças a tiracolo e atrasos
de voos em cascata. No mês de julho, então? É regra! Férias da gurizada na
escola, recesso em muitas repartições públicas, também na iniciativa privada
muitas atividades dão uma pausa. Mais gente nos aeroportos, mais confusão.
No
mundo todo, normal. No entanto,
independentemente de quem tinha razão
no episódio barraqueiro ainda não esclarecido (a regra diz que o mais
provável é que ninguém tivesse, mas a prudência me faz aguardar as
imagens das câmeras de segurança revelarem a verdade), para um
ministro
do Supremo Tribunal Federal
(STF) a situação não foi nada
“normal”, ainda que indesejável e
desconfortável.
No Brasil
, uma das autoridades máximas do nosso Poder Judiciário
acaba de elevar barraco de aeroporto a tentativa de golpe;
- a crime
contra o "Estado Democrático de Direito";
a evento passível de mandado de busca e apreensão na casa do perigoso “suspeito”,
com direito à violação de sua intimidade com a apreensão de seu celular
e ao cometimento de um abuso de autoridade de fazer admirar pela
desfaçatez qualquer ditador mais cauteloso. Isso, sim, é um ataque à democracia, à Constituição, às liberdades e garantias individuais, e ao Estado de Direito! A
ação do ministro Alexandre de Moraes e a ação e omissão de seus colegas
no Supremo ultrapassaram, há muito tempo, as raias do absurdo.
Também
neste caso está havendo um claro desrespeito ao devido processo e às
regras de competência estabelecidas no código de processo penal, em que
se prevê que crimes praticados fora do território nacional terão como
competente o juízo da capital do estado onde por último tenha residido o
acusado.
Caso nunca tenha residido no Brasil, será competente o juízo
da capital da República.
Portanto,
não resta dúvida: o foro competente para apurar eventuais crimes neste
caso é a justiça comum, nunca o STF. Porém, como a eventual vítima se
trata do todo-poderoso ministro Alexandre de Moraes,
mais uma vez as regras do procedimento penal brasileiro são ignoradas.
Em mais um abuso de autoridade, o ministro tira proveito indevido de sua
posição de poder para inverter a lógica dos direitos e garantias
constitucionais, vasculhando a vida privada e a intimidade de um cidadão
comum para além dos limites legais.
Em
mais um abuso de autoridade, o ministro tira proveito indevido de sua
posição de poder para inverter a lógica dos direitos e garantias
constitucionais.
Repito:
independentemente de quem tinha razão,
se é que em tal quiprocó alguém
tinha, é inadmissível em uma democracia constitucional que um
representante do Estado avance sobre o cidadão como Alexandre de Moraes
tem feito, neste e em já incontáveis outros casos. O
lamentável episódio no aeroporto de Fiumicino,
Roma, envolvendo a família de Moraes e a família de um cidadão
brasileiro é, sem dúvida,
digno de repúdio, pois barracos em aeroporto
são, via de regra, dignos de repúdio.
Elevar tal situação a episódio de
comoção nacional e, pior, tratá-lo como o que, juridicamente, não é e
jamais será, é de uma atrocidade mil vezes mais repudiável, pois agride a
Constituição, agride nossa lei e agride qualquer tipo de bom senso.
A
ação do ministro Alexandre de Moraes e a ação e omissão de seus colegas
no Supremo ultrapassaram, há muito tempo, as raias do absurdo.
Até
quando a maior parte da mídia vai continuar passando o pano para esse
tipo de situação?
Até quando a Câmara dos Deputados demorará para instalar uma CPI para investigar os abusos de autoridade cometidos pelos ministros do STF e do TSE? Até quando o Senado
se omitirá no seu dever Constitucional de processar ministros do
Supremo e
entregar à sociedade o impeachment dos membros que têm
cometido crimes de responsabilidade diuturnamente?
A sociedade brasileira assiste atônita à escalada autoritária
enquanto os ditadores brasileiros de plantão, em todos os Poderes, já não têm
mais o menor pudor em avançar sobre nossos direitos constitucionais diante da
inércia institucional que reina. E reina com majestades por todo lado, coroadas
ficticiamente como um Luís XIV, cujo mantra na França pré-revolucionária era “l’Etát c'est moi” (o Estado sou eu).
A
nobreza francesa, porém, não muito tempo depois surpreendeu-se da pior forma
possível com a realidade: não, o Estado não era ela e, por isso mesmo,
precisava ser limitado para não ser por ela abusado.
Nosso
futuro não precisa nem deve ser tão conflitivo quanto foi a história
francesa do final do século XVIII.
Esta fase histórica, aliás, já
deveria estar superada há muito tempo no Brasil e em todo o mundo.
Basta
que as instituições voltem a funcionar como deveriam, sem recurso à Lei
de Talião pelos poderosos, e a democracia constitucional se
restabelecerá.
Falta, porém, que se respondam às perguntas acima: até
quando quem mais pode fazer alguma coisa se dará conta de que já foi
longe demais?
Marcel van Hattem, deputado federal em segundo mandato - Coluna Gazeta do Povo - VOZES