A relação que a memória tem com o
tempo e com a realidade é isto: uma relação. O caráter simbólico da memória
desmancha o tempo e processa a realidade. Ou não haveria as artes, as paixões,
a História, a Literatura, o próprio homem. Nem as madeleines de Proust.
Consoladora criação para nossos corações, humanizados em desejos solenemente
desdenhados pelo tempo jamais cúmplice.
Também a memória, esta sim, nossa
cúmplice, permanece com os nexos dela que tecem sentidos incólumes à erosão do
tempo. Ela diz quem somos, quem é nossa gente, como e onde é nossa pátria. Pode
ser a rua onde crescemos, a nossa língua ou qualquer outra, digamos,
experiência na qual esbarremos com nós mesmos e nos reconheçamos.
E pode ser a resistência
democrática como
vimos fazendo, na qual nos reconhecemos mesmo sem nos conhecer. A identidade de um país e de um indivíduo não existe sem a
memória. E esta coluna é guardiã da memória do país que sonhamos e
podemos ser nos textos luminosos dela e nos comentários que suscitaram e que,
somados ao restante da resistência democrática, já conversavam com o futuro que
é hoje.
Combatemos
as trapaças do lulopetismo que desfaziam a memória e forjavam uma cínica e
monolítica versão da história e do presente, outro integrante do arsenal de vigarices para
emparedar o estado de direito democrático. Eis que é sob ele que o lulopetismo
agoniza; o antídoto contra esse bando não é intervenção militar ou o atropelo
das instituições, mas justamente o apelo a elas, pois esta sordidez de 13 anos
não é inerente à democracia.
Comprova isso o próprio
lulopetismo que, depois de alcançar o poder pela via democrática, viu que apenas roubando como nunca poderia ficar no poder para sempre.
Não era política de esquerda nem de direita, mas somente roubalheira e incompetência –
a substância do petismo que, concebido por um jeca
oportunista, não tem ideologia além a de garantir o perene exercício do
poder para se arrumar na vida.
Há uma práxis lulista sim, mas
não um pensamento; este é
arrendado segundo a conveniência. À afirmação segundo a qual o que está
dominado é o bando, alguém dirá ah, mas
o jeca está solto, Dilma continua presidente, o Estado aparelhado e tal.
São realidades que se superpõem, não se negam nem se complementam, mas
enfrentam-se até que a decência vença.
Diluir
esse embate essencial – e contínuo na
defesa e aprimoramento da democracia – no limite brumoso entre entoar
semanalmente que a casa caiu ou conclamar à resignação porque tudo estaria
dominado é dispensar-se de tatear as nuances da realidade nas lonjuras do
alarmismo e do conformismo. Se tenho
certeza de que o país que presta vencerá?
Ora, temos sido vencedores em
manter o embate no qual preservamos a memória do país que queremos ser. É
memória que impregna o futuro. Que, como toda certeza, não pode ser
cicatrizada, mas manter-se ferida primordial e sangrante para que, nos cuidados
com ela, sustentemos o combate que não nos deixa esquecer: não somos dominados.
Fonte: Valentina de Botas – VEJA – Coluna Augusto
Nunes