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domingo, 7 de junho de 2020

Me engana que eu gosto - Eliane Cantanhêde

O Estado de S.Paulo 

Bolsonaro esconde números, mas Trump conta ao mundo o fracasso do Brasil na pandemia 

[Uma sugestão:
Vamos respeitar os mortos. O combate ao coronavírus não sofre nenhum prejuízo se a divulgação oficial dos números demora mais, apresentando, em compensação, números mais precisos, já consolidados.
Transformar a apresentação de mortos em campeonato, um Guiness Book televisivo = estilo a apresentadora entra com um boa tarde e já engata que 'em 24 horas o Brasil tem uma morte causada pela covid-19 a cada minuto.] 

Além de negar a pandemia, o presidente Jair Bolsonaro quer esconder os balanços de mortos, contaminados e recuperados, achincalhando o Ministério da Saúde. Demitiu um ministro, expeliu outro, nomeou um general intendente como interino, descartou o isolamento, empurrou a cloroquina garganta abaixo de médicos e especialistas e agora isso: sonegar os números. Pois vamos a eles: são mais de 35 mil mortos (35 mil!) e quase 650 mil contaminados (650 mil!), numa expansão macabra, fora de controle. O presidente dá de ombros para os mortos – “E daí?” – e os governadores relaxam atabalhoadamente o isolamento para abrir lojas e serviços na pior hora. Logo, vai piorar.


O “amigão” Donald Trump fala mais uma vez do fracasso brasileiro e informa ao mundo que os EUA teriam não 108 mil, mas até 2,5 milhões de mortos, se tivessem agido como o Brasil e a Suécia – país, aliás, que Bolsonaro citou como referência no combate à pandemia, contra o isolamento, com tudo aberto, e hoje é um exemplo mundial de derrota.

Assim, o Brasil divide o pódio de mortos: EUA em primeiro lugar, Reino Unido em segundo, Brasil em terceiro, perto de chegar ao segundo. O que os três têm em comum? O negacionismo de Trump, Boris Johnson e Bolsonaro. Com uma diferença, literalmente, vital: Trump e Johnson (que pegou a covid-19) ridicularizaram e negaram, mas voltaram atrás, enquanto Bolsonaro continua obstinadamente negacionista.

[infelizmente Bolsonaro não estava, nem está errado, apesar de no inicio, quando havia tempo de mudar as medidas sem o aumento de doentes e mortos,  nossa torcida era para ele estar errado.

Esclarecendo: se tratando de combater a pandemia não existe ideologia - o importante e conter o vírus, conter o adoecimento e as mortes. 

Seja a contenção com Bolsonaro ou Stalin. No momento em que o Supremo decidiu que o comando seria dos governadores e prefeitos - que adotaram regras totalmente diversas das defendidas pelo presidente Bolsonaro - passamos a torcer que eles estivessem certos.

Só que agora, com os combatentes credenciados sem saber o que fazer para conter o vírus, alguns recuando, passando da quarentena meia boca para o fechamento abertura intercalados (Brasília fez uma quarentena meia boca, resolveu abrir quase tudo, agora voltou a fechar parcialmente algumas atividades e cidades) só nos resta concluir, com tristeza, que o presidente Bolsonaro estava e está certo.

Erradas estão as autoridades de alguns estados, notadamente Rio e São Paulo e do Distrito Federal. Pelo tempo que vacilam, a imunidade de rebanho, método defendido pelo presidente, teria sido alcançada.  Até a OMS perdeu o rumo = uma semana proíbe até estudar a cloroquina, na outra semana libera.]

A pandemia mata inclemente, mas o presidente só pensa e age numa direção: a política. Para salvar seu mandato e armar sua reeleição, com o cerco se fechando no Supremo (PF e fakenews, que pode chegar ao “gabinete do ódio”), no Congresso (CPMI das fakenews e 30 pedidos de impeachment) e TSE (oito ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão). O temor do Planalto é que elas afunilem e um pressione o outro. Uma rede, uma máquina do mal.

O que o presidente não entende é que essas ações isoladas só terão chance se confluir para um movimento único contra seu mandato com um empurrão decisivo: o total fracasso pessoal dele na condução – e percepção – do coronavírus, com efeito na economia, nas empresas, nos empregos e, portanto, na estabilidade social. [o Supremo Tribunal Federal proibiu o presidente Bolsonaro de errar no combate ao coronavírus, delegando tal função aos governadores e prefeitos.] O destino de Bolsonaro não depende das cinco frentes de investigações e, sim, como seus erros gritantes vão potencializá-las.

De jet-ski, helicóptero ou a cavalo, brincando de tiro ao alvo e animando shows antidemocráticos sem usar máscara, Bolsonaro não governa o País, não dá uma palavra sobre o combate ao vírus, nem sobre a economia, nem sobre a articulação federativa. É o oposto. Quando abre a boca sobre a pandemia, reclama da “histeria” e diz e daí?”, “é o destino de todo mundo”. [Apontando o óbvio: a frase é verdadeira desde que o mundo é mundo, apenas o presidente a apresenta de uma forma não políticamente correta = falar em corda em casa de enforcado.] Sobre a economia, ou joga para Paulo Guedes (que submergiu) ou culpa os governadores, “esses m....”, “bostas” e “estrumes”, capazes de fazer tudo isso só para prejudicá-lo. Uma confusão mental.

Diante das condições adversas, Bolsonaro corre para setores católicos (com verbas de mídia), consolida o apoio evangélico (com uma forcinha da Receita), dá aumento para as polícias e centenas de cargos para o Centrão. Pela mesma janela que a Lava Jato saiu com Sérgio Moro, entram os alvos da Lava Jato com Roberto Jefferson, Valdemar da Costa Neto, Arthur Lira. Não há pesquisa sobre a “posição das Forças Armadas”, mas a cúpula do Exército abre canais com Judiciário e Legislativo, enquanto milhares de oficiais fecham olhos e ouvidos para os absurdos de Bolsonaro e dividem alegremente os nacos de poder com o Centrão. O discurso para defender o indefensável na pandemia, na economia e na política ainda é a esquerda e o liberalismo de costumes. Mas é só pretexto. No fundo, o toma-lá-dá-cá é uma delícia, tentador. Me engana que eu gosto.

Eliane Cantanhêde, colunista - O Estado de S. Paulo