Na
última quarta-feira, após a presidente do STF anunciar o resultado da
votação para a vice-presidência do tribunal, em que o ministro Alexandre
de Moraes recebeu um voto, enquanto o ministro Edson Fachin recebeu
dez, num clima descontraído, seguiram-se falas de dois ministros em tom
de brincadeira:
- Ministro Alexandre de Moraes: “é que a votação não foi no TSE”.
- Ministro Gilmar Mendes: “vai colocar esse pessoal no inquérito”.
O
humor tem sido, ao longo da história, uma ferramenta para ilustrar,
criticar e até satirizar as realidades mais cruéis e absurdas de uma
sociedade. Pode também ser usado como um espelho revelador de uma
realidade que muitos tentam ignorar.
A
alusão de Moraes ao seu poder absoluto no Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) e a insinuação de Gilmar Mendes de que Moraes poderia usar sua
influência para perseguir aqueles que não o apoiaram trouxeram à luz uma
faceta sombria de nossa corte suprema, a de interferências e
manipulações.
Com sua brincadeira pública, os
ministros, talvez inadvertidamente, chamaram a atenção para as
preocupações que muitos brasileiros têm há algum tempo: a politização do
STF e a influência de agendas pessoais nas decisões judiciais.
O humor tem sido, ao longo da história, uma ferramenta para ilustrar,
criticar e até satirizar as realidades mais cruéis e absurdas de uma
sociedade
O tamanho do poder de Moraes
no TSE está evidente há tempos. Em maio, Moraes conseguiu nomear ao TSE
dois advogados ligados a ele. Mas não bastou isso. No dia 24 daquele
mês, num ato audacioso de atropelo do protocolo, o próprio Moraes
anunciou que tais advogados foram escolhidos pelo presidente, sem
aguardar o pronunciamento oficial da presidência ou de sua Secretaria de
Comunicação.
Em
junho, a imprensa noticiou que Moraes procurou pessoalmente outros
ministros da corte eleitoral em julgamentos importantes, como aquele da
inelegibilidade de Bolsonaro, buscando construir compromissos e
consensos.
No caso de Bolsonaro, buscou evitar o adiamento do julgamento
por pedidos de vista, que efetivamente não ocorreram.
A unanimidade na
minha cassação foi tida por um jornalista reconhecido como articulada
também pelo ministro.
A essas demonstrações se somam
as numerosas decisões de Moraes que têm sido consideradas, por muitos
juristas como arbitrárias, mas têm sido endossadas pelos demais
ministros. E aqui entra a segunda piada, de Gilmar, que reflete a
inclinação de Moraes para censurar vozes discordantes, em violação à
Constituição e às leis.
Um caso que revela tais
abusos voltou à tona nesta última semana, envolvendo o influenciador
Monark. Moraes emitiu uma terceira ordem de bloqueio das redes sociais
do influenciador. Contudo, tal bloqueio é absurdo.
Primeiro, a decisão que congelou suas redes, impôs multa de 300 mil
reais e determinou que seja investigado por desobediência não indica em
momento algum que regra constitucional ou legal as manifestações do
influencer violaram. Vários juristas apontaram não existir uma violação
sequer.
Segundo,
se houvesse algum abuso, seria possível discutir a retirada pontual de
conteúdo das redes, mas jamais seu bloqueio total. Hoje, as redes
sociais são em grande medida a voz das pessoas, um canal básico de
expressão. Bloquear as redes é o equivalente medieval de cortar a língua
da pessoa.
Para além de não ter previsão na
Constituição ou nas leis, o bloqueio das redes é vedado por elas. De
fato, caracteriza censura prévia proibida expressamente pela
Constituição.
Essa censura prévia impede Monark de se expressar sem se
saber previamente que conteúdo expressaria.
Isso prejudica a
manifestação de sua personalidade, violando um direito humano básico, e
prejudica o debate público.
E aqui entra a segunda piada, de Gilmar, que reflete a inclinação de
Moraes para censurar vozes discordantes, em violação à Constituição e às
leis
Em terceiro lugar, como as redes
sociais são o instrumento de trabalho de Monark, o bloqueio das suas
redes o impede de auferir renda, o que conflita com a impenhorabilidade
dos instrumentos de trabalho e com a própria dignidade da pessoa.
Some-se
que a imposição de multa sem ampla defesa e contraditório viola o
devido processo legal. É um confisco.
Além disso, a instauração de
inquérito para apurar desobediência conflita com a jurisprudência das
próprias cortes superiores segundo a qual não há desobediência quando há
aplicação de multa.
Isso tudo se refere a apenas uma
decisão, mas há numerosas outras que rasgam a Constituição e as leis. A
decisão de Monark é mais um testemunho da intensidade com que o
ministro Moraes atua quando se sente desafiado ou contrariado. Essas
decisões, que lembram um período sombrio da nossa história em que a
liberdade de expressão estava sob constante ameaça, foram percebidas por
muitos como tentativas de controlar a narrativa e suprimir vozes
dissidentes.
Em um sistema judiciário ideal, a
justiça não tem cor, sabor ou inclinação política. Ela é cega e
imparcial.
A brincadeira entre Moraes e Mendes revela uma complacência
com algo tóxico que está se infiltrando na instituição, corroendo seus
fundamentos que deveriam estar na defesa da democracia, do estado de
direito e dos direitos fundamentais.
Se
aceitarmos que a "brincadeira" tem, de fato, um fundo de verdade, então
estamos diante de uma crise que vai além do Judiciário. Estamos
testemunhando autocracia e tirania judiciais que constituem uma ameaça à
própria essência da democracia brasileira.
O quadro
de escalada do arbítrio judicial torna as "piadas" menos inocentes.
O
risco não está na piada em si, mas no que ela reflete ou destila.
Se o
poder de um ministro domina a corte e se o ministro pode usar de seu
poder para perseguir quem o desafia ou desagrada, onde se pode buscar
justiça?
Isso explica a indignação de tantas pessoas
nas redes sociais diante das ironias dos ministros.
As piadas foram
compreendidas como um tapa na cara da sociedade de uma Justiça em crise,
que em nome de defender a democracia tem sistematicamente violado
direitos fundamentais e, assim, corroído a própria democracia.