O desfecho de nossa história depende em grande parte da sociedade civil. Precisamos renovar
Não é preciso ler Dostoiévski para saber que o crime e o medo do castigo podem acabar com a vida de alguém que se desviou do rumo e se bandeou para o outro lado, sem volta. Crime e castigo é uma obra-prima de 1866, que discute os limites da moralidade. Para se livrar da punição a um homicídio, o assassino se envolve em outro e tenta se justificar para si e para Deus. Essa parte do enredo lembra nossos políticos “serial-robbers”, viciados em roubar do povo. Não param nunca, nem presos. De obras de infraestrutura a obras de arte, imóveis ou joias, tudo vale para enriquecer a “famiglia” e afundar o país.
Numa semana em que o presidente brasileiro Michel Temer, acossado pela Justiça e por 9% de popularidade, mas sem nenhum sinal de arrependimento, visita a Rússia, é oportuno revisitar – ao menos na memória – esse clássico de 600 páginas. A angústia e o remorso atormentam a consciência do jovem criminoso Raskólnikov, estudante endividado que mata a agiota e, depois, a irmã dela. Os interrogatórios do juiz o perseguem. Ele confessa e é condenado a oito anos de prisão na Sibéria.
O problema é que, no Brasil, escrevemos há anos uma história bem diferente, a do “Crime Sem Castigo”, sem culpa, sem remorso, sem punição. Temos uma chance de acabar com a impunidade, mas, se todo mundo acabar em mansão com tornozeleira, spa e bicicleta ergométrica, vai ficar complicado educar a juventude. Nossos anti-heróis não parecem ter dilema moral algum. Aliam-se a deus e ao diabo para salvar a pele.
Nem PMDB, nem PT, nem PSDB têm propostas que consigam unir suas bases ou ganhar a confiança do eleitorado. A pauta-bomba que implode os partidos políticos não é a delação – ou colaboração – premiada. A delação é apenas a ferramenta mais valiosa para revelar os assaltos bilionários ao cofre-forte público. Um instrumento para recuperar as fortunas roubadas para beneficiar a população e resgatar a credibilidade do país, interna e externamente. Isso, se a Justiça não falhar.
Foi um alívio – após o vergonhoso julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE – ver o Supremo Tribunal Federal avalizando, por uma goleada inicial de 7 a 0, a delação dos donos da JBS. Não adiantou ninguém fazer beicinho. Faltam apenas alguns votos. Tanto o Ministério Público quanto a Procuradoria-Geral da República tiveram reforçada sua autoridade. Vida longa ao relator Edson Fachin e ao procurador Rodrigo Janot. Há quase um consenso de que o acordo com Joesley Batista foi excessivamente benéfico para o delator, mas ele começa a ser punido aqui e lá fora no lugar que mais mexe com a consciência desse tipo de bandido: no bolso.
Todos os partidos com culpa no cartório tentam melar a Lava Jato. Vem daí a implosão nas trincheiras. Michel Temer dá cambalhotas de circo para aprovar fiapos de reformas e escapar ao cerco da Justiça, mas divide profundamente o PMDB a cada pesada denúncia que surge contra ele. Fernando Henrique Cardoso apoia publicamente a renúncia de Temer e discorda dos tucanos que tentam sustentar a pinguela do presidente em troca de mais tempo para o PSDB na televisão em 2018 – e também em troca de salvo-conduto para Aécio Neves, que só não foi cassado graças ao rabo preso de seus pares. Lula, indiciado, como Temer, em vários inquéritos por corrupção na Presidência e fora dela, se irrita com a articulação de petistas e do PSOL para discutir uma frente de esquerda e um programa de governo. A reunião aconteceu no domingo. Lula não foi convidado nem informado. Foi o último a saber.
O desfecho de nossa história depende em grande parte da sociedade civil. Depende de nós. Há uma apatia inacreditável no país. Não parece o mesmo Brasil que foi às ruas em 2013, numa indignação apartidária contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus. Era um bom pretexto para protestar. A polarização nacional hoje divide torcidas entre uma suposta esquerda e uma suposta direita, que não são nada disso. É um erro santificar ídolos com pés de barro ou apostar num salvador da pátria que seja “dos males o menor”. Se não existir uma mobilização consciente e pacífica, sem bandeiras de partidos e sem black blocs, contra governantes e políticos que se comportaram como bandidos, será muito difícil refundar nossa República sobre princípios éticos. Não podemos transigir. Precisamos renovar.
Se há crime, é preciso haver castigo, já dizia Dostoiévski. Mas parece ser só na ficção. Na vida real, o que os russos têm hoje é o duro Vladimir Putin, no poder há 18 anos. Putin reprime investigações e manifestações com mão forte. O envolvimento em corrupção é apenas uma das acusações contra ele. Putin tem mais de 80% de popularidade. É o pior dos mundos. Um autocrata popular.
Fonte: Ruth de Aquino - Revista ÉPOCA