Quando o juiz Marcelo Bretas apareceu no noticiário como titular da ação
penal do caso Eletronuclear, em 2015, parecia dar vazão à ideia de que
Sérgio Moro não era um ponto fora da curva. A prisão - e soltura - do
ex-presidente Michel Temer mostraram que a segunda geração de juízes
pós-Constituinte ameaça colocar o Judiciário numa espiral autocrática.
O atual ministro da Justiça tornou-se juiz em 1996, aos 26 anos,
debruçando-se, desde o início de sua carreira, em casos de corrupção e
lavagem de dinheiro a partir do caso Banestado. Apesar de dois anos mais
velho, Bretas estreou na magistratura um ano depois de Moro. Passou 15
anos em varas no interior do Estado até ser lotado na 7ª Vara da Justiça
Federal no Rio, onde, oito meses depois, recebeu a fatia da Lava-Jato
desmembrada pelo então relator do caso no Supremo Tribunal Federal,
Teori Zavascki.
Quando a Constituição foi promulgada, em 1988, nenhum dos dois havia
entrado na faculdade. Iniciaram seus estudos jurídicos quando a primeira
geração de magistrados protagonizou os novos poderes outorgados pela
Carta na proteção e na garantia dos novos direitos conferidos pelo texto
que redemocratizou o país. Ambos passaram no concurso para a Justiça
Federal no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, às
vésperas da aprovação da emenda da reeleição pelo Congresso.
Ainda não eram juízes quando, em 1995, a Associação dos Magistrados do
Brasil (AMB) promoveu o primeiro grande levantamento sobre o perfil da
corporação, tarefa confiada a um grupo de pesquisadores liderado pelo
professor Luiz Werneck Vianna, um dos principais estudiosos do
Judiciário no país. Mas ambos ainda estavam na magistratura quando
Werneck, Maria Alice Carvalho e Marcelo Burgos voltaram à rua no ano
passado para uma nova rodada de perguntas patrocinada pela mesma
entidade.
Ambas as enquetes tiveram a participação de quase quatro mil juízes e um
questionário de quase 200 questões. Nelas, está o retrato da evolução
do ativismo judicial pós-Constituinte. Uma primeira geração de
magistrados, mais antenada em garantir acesso à saúde, educação e
liberdade de expressão, abriu espaço para uma outra, voltada,
prioritariamente, ao exercício do poder e seus desvios. A mudança, ainda
que pincelada em nuances da pesquisa, mostra uma geração mais
autorreferente no julgamento sobre o que é o bem comum.
Os resultados desta pesquisa mostram que Moro e Bretas estão na mediana
de sua geração de juízes, como já sugerira o apoio que reiteradamente
recebem das entidades de classe. Mais da metade dos magistrados, em
todas as instâncias, demonstraram concordar que o Judiciário, em menor
ou maior grau, pode ser criativo na produção de normas, "a fim de
atender os anseios da coletividade".
Indagados se, em "temas sensíveis" para a sociedade sobre os quais não
se constituiu uma maioria parlamentar, os magistrados podem interpretar
criativamente as leis, desde que se guiem pelo "ideal de bem comum", o
grau de concordância ultrapassa com folga a maioria, chegando a 80%
entre os togados de tribunais superiores. Na pesquisa da geração
passada, a adesão à criatividade dos juízes não ultrapassava um terço da
amostra entre juízes de primeiro e segundo graus.
Não por coincidência, Luis Roberto Barroso, autor da tese de que cabe a
um Judiciário iluminista a missão de "empurrar a história", aparece como
um dos juristas mais citados pelos entrevistados. Na primeira
instância, o ministro do Supremo Tribunal Federal vem em segundo lugar,
depois de Pontes de Miranda, e com mais citações do que Ruy Barbosa.
Entre os togados do STF, só Luiz Fux lhe faz companhia na lista, ainda
assim com um terço de suas citações.
Se Moro havia abusado da criatividade ao autorizar o grampo e a
divulgação de conversa telefônica de uma presidente da República, Bretas
não ficou para trás. Fiou-se numa tentativa de depósito na conta de um
suposto operador de Temer que não chegou a se efetivar para autorizar
prisão preventiva não prevista em lei. O controverso perfil do
desembargador que reverteu sua decisão não poderia ser mais ilustrativo
dos extremos do embate com a geração pré-Constituinte.
A prevalência do combate à corrupção identificada pela pesquisa como
prioridade do Judiciário se deu paralelamente à consolidação de uma
magistratura mais aproximada do perfil da classe média brasileira, como
Moro, filho de um casal de professores de Maringá (PR), e Bretas,
egresso de uma família de comerciantes da Baixada Fluminense. Mais da metade de pais e mães dos juízes de 1º e 2º graus têm curso
superior completo. Na pesquisa anterior, este era o perfil de um em cada
três togados. A amostra revelou uma atuação mitigada na garantia de
direitos sociais de uma geração com menor representatividade feminina
(34%) numa corporação que já chegou a ter 41% de mulheres.
Além de homens de origem mais elitizada, os juízes são também mais
velhos. Se a pesquisa anterior tinha apenas 13% de sua amostra entre
magistrados com menos de 30 anos, nesta o percentual caiu para 2%. Em
meados da década de 1990, metade dos juízes tinha menos de 40 anos.
Hoje, um terço está nessa faixa etária. São os juízes de primeiro grau
e, portanto, os mais jovens da amostra, que, na mais nova edição da
pesquisa, aparecem como os únicos a darem pouca importância à tese de
que o acesso à Justiça, por oneroso, leva a uma seleção social de seus
beneficiários.
Convidados a indicar as três áreas mais importantes de atuação do
Judiciário em uma democracia, a única comum aos quatro segmentos em que a
pesquisa é dividida (1ª instância, 2ª instância, tribunais superiores
e inativos) é o controle da probidade administrativa interna e externa.
A defesa da ordem pública vem em segundo lugar, mas não é citada na
tríade elencada pelos ministros de tribunais superiores, que optam pela
"defesa dos direitos humanos e controle da violência estatal" na sua
lista tríplice de prioridades.
Professor do Insper e pesquisador vigilante das tendências do
Judiciário, Diego Arguelhes aposta que o ativismo da geração de Moro e
Bretas ainda está longe de se esgotar. Vê os primeiros sinais de
contestação ao padrão estabelecido pela Lava-Jato surgirem na produção
dos centros acadêmicos, onde são formados os juízes. Calcula, no
entanto, que essa contestação, se consistente, só venha a se refletir no
padrão de comportamento da magistratura daqui a, pelo menos, dez anos.
Nas duas pontas da amostra da pesquisa, o 1ºgrau e os tribunais
superiores, está a maior crítica ao ativismo dos magistrados nos meios
de comunicação. Por larga maioria, em todas as instâncias, os juízes
concordam que o trabalho da imprensa contribui para a transparência do
Judiciário. A maioria dos juízes diz se valer de redes sociais para se
informar.
Quando autorizou a prisão de Sérgio Cabral, em 2016, Bretas ainda se
mantinha à sombra de Moro, a quem sempre tratou de forma reverente.
Mantinha-se longe da imprensa, a quem atendia informalmente antes das
audiências, evitando entrevistas. Começou a mudar quando, no fim de
2017, em seu primeiro embate com o ministro do Supremo Tribunal Federal,
Gilmar Mendes, foi homenageado por um grupo de artistas liderado por
Caetano Veloso. O ato animou-o a entrar nas redes sociais. O juiz deixou a discrição
definitivamente de fora, porém, com a ascensão do bolsonarismo. Aplaudiu
com um emoji a convocação feita pelo presidente eleito para sua posse e
escancarou suas simpatias pelo governador do Rio, Wilson Witzel - "Que
Deus o oriente e abençoe", escreveu.
Em suas postagens, usa filosofia de algibeira ("A coragem conduz às
estrelas, o medo à morte", Sêneca), frases de empreendedores de sucesso
("Todo mundo quer, obviamente, ser bem-sucedido, mas eu quero ser visto
como inovador, muito confiável e ético e, finalmente, fazer uma grande
diferença no mundo", Sergey Brin, cofundador do Google) e de livros de
autoajuda ("Às vezes, tudo o que você precisa fazer é abaixar sua
cabeça, orar a Deus e resistir").
No dia em que se tornou o segundo juiz da história a mandar prender um
ex-presidente, valeu-se de um salmo bíblico ("Ainda que eu ande pelo
vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a
tua vara e o teu cajado me consolam"). No dia seguinte à soltura de
Temer, desejou bom dia aos "brasileiros de bem" com um parachoque de
caminhão: "O silêncio é a única resposta que devemos dar aos tolos,
porque onde a ignorância fala, a inteligência não dá palpites". Nenhum
artigo da Constituição aparece nos seus 35 tuítes.
O comportamento de Bretas ainda não fez escola. O conjunto dos juízes de
sua geração ainda é cauteloso com o uso de redes sociais. A grande
maioria se vale delas para se informar e fazer contatos. Na primeira e
segunda instâncias, os magistrados que vão às redes para manifestar
opiniões não chegam a 10%. A grande maioria dos juízes ouvidos pela pesquisa acredita que a
imprensa ajuda a dar mais transparência aos atos do Judiciário. Pelo
menos uma vez, Bretas pareceu agir em dissonância com o entendimento
coletivo. Quando se defendeu da divulgação do auxílio-moradia duplo que
ele e sua mulher, Simone Dias Bretas, também juíza, recebiam, apesar de
residentes na mesma casa.
A concordância dos magistrados foi minoritária quando perguntados se o
Judiciário deve se atribuir "um papel ético-moral na sociedade,
educando-a para a vida pública e a cidadania". Não é papel de juiz, nem
tinha como ser. Mais de 70% dos juízes de primeira instância moram em
casa própria, percentual que ultrapassa os 90% nas instâncias
superiores. A despeito disso, foram todos beneficiados pela medida que,
no fim do ano passado, incorporou o auxílio-moradia aos seus honorários.