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Crônicas de um Estado laico
A perseguição religiosa não para no Brasil, e parece que grande parte da mídia vibra quando um religioso é calado, como no caso que vamos comentar a seguir.
O caso prosseguiu com o recurso de apelação do deputado, resultando na transferência do processo para a Justiça Federal (no caso, o TRF3) e na apresentação de uma Reclamação Constitucional ao Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa reclamação, Feliciano argumentou pela anulação da condenação com base em decisões vinculantes que protegem a liberdade religiosa, especificamente citando a ADO 26. A Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer apontando deficiências processuais, mas o mérito ainda aguarda decisão do STF.
A parte dispositiva da ADO 26, da qual foi relator o ministro Celso de Mello, garantiu:
“A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.”
As liberdades religiosa e de consciência, fundamentais e vinculadas à dignidade humana, são reconhecidas internacionalmente e no ordenamento jurídico brasileiro
O direito fundamental à liberdade religiosa, conforme definido pela ADO 26, abrange, para as religiões abraâmicas, a repreensão de práticas consideradas heréticas, sacrílegas e blasfemas, tanto de forma privada quanto pública. A proteção constitucional à comunidade LGBTQIA+ não exclui a expressão pública da liberdade religiosa, abrangendo diferentes orientações, desde progressistas até fundamentalistas. Contudo, o paradigma estabelece um limite claro: o discurso de ódio, caracterizado por discriminação, hostilidade ou violência, sujeito ao critério trifásico de Norberto Bobbio, como sedimentado na jurisprudência brasileira, inclusive no STF – no caso, o RHC 134682, julgado na Primeira Turma em 2016, com relatoria de Edson Fachin:
“O discurso discriminatório criminoso somente se materializa após ultrapassadas três etapas indispensáveis. Uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim; uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.”
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O direito à liberdade religiosa encontra-se expresso no artigo 5.º, incisos VI e VIII, da Constituição Federal. Nesse sentido, escrevemos em nosso livro Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas: “A dignidade da pessoa humana deve ser o norte da aplicação do Direito em nossa nação, sendo ele um dos fundamentos do Estado Democrático e da República Brasileira (art. 1.º, III, da CRFB/1988). Assim, todos os princípios constitucionais devem se confrontar com a dignidade da pessoa humana, para, então, conformarem-se com ela”.
A liberdade de consciência abrange as convicções mais profundas do ser humano, incluindo aspectos religiosos, morais, ideológicos, filosóficos e políticos, situando-se em uma esfera íntima inacessível a intervenções de entidades públicas ou privadas. Essa fortaleza é o cenário do encontro singular e decisivo do indivíduo consigo mesmo. Embora conectadas, a liberdade de consciência e a liberdade religiosa são distintas, sendo a primeira a expressão interna e a última, a externalização desse foro íntimo. Consciência e religião, inseparáveis, compartilham conteúdos interligados e convergentes.
A liberdade religiosa, vital para preservar a dignidade humana, reflete a identidade e perspectiva de vida, morte e além, fundamentando-se na escolha e adesão às crenças religiosas. Esta liberdade abrange todas as dimensões individuais, incorporando deveres para com dogmas religiosos. A verdadeira liberdade religiosa vai além da proteção à crença interna, incluindo a liberdade de expressar e praticar essas crenças, isto é, o exercício da crença, o action to belief. Restringir condutas religiosas expõe a liberdade religiosa a ameaças, comprometendo a autêntica expressão da religiosidade na sociedade e limitando a liberdade do indivíduo em agir conforme suas convicções religiosas.
A intolerância religiosa
Desrespeitar ou distorcer os valores e crenças de uma religião, ou pior, silenciar sobre esses princípios é uma afronta à dignidade da pessoa humana e à liberdade religiosa. A fé, sendo intrínseca e fundamental para a identidade humana, naturalmente suscita sentimentos de ofensa quando desconsiderada. É crucial manter um equilíbrio respeitoso entre direitos quando um invade a esfera do outro, especialmente quando se trata do direito de crer, garantindo a preservação dos direitos fundamentais e a ordem democrática.
Restringir condutas religiosas expõe a liberdade religiosa a ameaças, comprometendo a autêntica expressão da religiosidade na sociedade e limitando a liberdade do indivíduo em agir conforme suas convicções religiosas
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A tolerância religiosa é crucial para garantir os direitos fundamentais, notadamente a liberdade de crença e religião, promovendo uma coexistência plural e inclusiva no espaço público. Mesmo que a tolerância religiosa não exija a aceitação das crenças de uma religião específica, é essencial respeitar esses valores para evitar ofensas à liberdade religiosa e prevenir a intolerância religiosa, que contradiz os princípios democráticos e agride a dignidade da pessoa humana.
A ofensa ao sagrado é agressão ao foro íntimo do indivíduo, é desrespeito à sua identidade, é “atacar a sua fé no sagrado é solapar a sua dignidade de ser humano”, como ensinamos em nossa obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas.
O parlamentar expressou sua defesa do sentimento religioso, alegando a violação dos fundamentos de sua fé e de milhões de brasileiros diante do vilipêndio a símbolos religiosos
Ademais, as críticas do parlamentar, embora contundentes, não configuram animus injuriandi ou caluniandi (nestes casos, sim, deveria haver punição), sendo direcionadas à defesa dos direitos da sociedade, principalmente daqueles que compartilham valores cristãos. Destaca-se que a inviolabilidade parlamentar impede a responsabilização penal ou civil, e a ausência de animus injuriandi ou caluniandi afasta a necessidade de reparação civil por danos morais, mesmo diante de comentários ofensivos associados à postagem do parlamentar.
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Conclusão
O fato é que o parlamentar expressou sua defesa do sentimento religioso, alegando a violação dos fundamentos de sua fé e de milhões de brasileiros (80% deles, talvez?) diante do vilipêndio a símbolos religiosos. Contrariamente ao parlamentar, a manifestação artística supostamente ultrapassou os limites, resultando em episódio de intolerância religiosa, possivelmente e, em tese, configurando o crime de vilipêndio público, conforme o artigo 208 do Código Penal.
Quando o Estado sanciona alguém que exerce sua atuação baseada em crenças pessoais, e mais ainda quando esse indivíduo é investido do poder da palavra por mandato constitucional, o desrespeito torna-se ainda mais evidente.
Isso reflete a preocupante expansão da perseguição religiosa, atingindo até mesmo membros do Legislativo, o que levanta questionamentos sobre o espaço restante para a expressão do povo em geral.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
Thiago Rafael Vieira, colunista - Gazeta do Povo - VOZES