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sábado, 8 de agosto de 2020

Os progressistas e a marcha da insensatez



O Novo Testamento da Virtude Política é um assombro. 
Mas o bom senso recomenda que se considere a realidade antes de chamar o padre para dar a extrema-unção ao mundo como ele é hoje

Boa parte daquilo que lhe dizem hoje em dia nos meios de comunicação, ou nas conversas do seu círculo social, indica que o mundo está ficando cada vez mais sem noção. A sua lógica recebe tiros por todos os lados. Pela mais recente tábua de mandamentos do feminismo realmente avançado, por exemplo, não se pode mais mencionar a existência de mulheres que menstruam; agora é preciso dizer “pessoas que menstruam”, sob pena de machismo, fascismo e discriminação “contra os transgêneros”.
Mas biologicamente só mulheres podem menstruar; não há nenhuma outra possibilidade, desde que o ser humano surgiu, há cerca de 2 milhões de anos. 

O que poderia haver de errado em dizer isso? Não interessa. É preconceito, pois nega a um homem que se sente “no corpo errado”, e gostaria de ser mulher, o direito de ficar menstruado. Em suma: a menstruação deve ser tratada como um fenômeno fisiológico que pode ser acessado por todas as “pessoas”.

Todo indivíduo de pele branca, seja lá qual for o seu comportamento, é racista; segundo os generais da atual guerra pela canonização imediata e mundial da etnia negra, o equipamento genético dos brancos, ou algo assim, os condena à prática do racismo, ou do crime de “branquitude”. Não se menciona como isso poderia funcionar com as etnias orientais, por exemplo, ou com os esquimós; também não há lugar, na cabeça dos defensores mais agressivos da nova consciência racial, para as pessoas que são fruto de séculos de cruzamento entre brancos e negros. No Brasil, por exemplo, estamos diante de um problema sem solução. Dezenas de milhões de pessoas, na verdade a maioria da população brasileira, não são brancas nem pretas — o que se vai fazer com essa gente toda? Pelo que deu para entender das últimas liminares baixadas na vanguarda intelectual do antirracismo como ele é praticado hoje, o tipo chamado “brasileiro”, ou “moreno”, também é racista — talvez até mais que os brancos. Em suma: ou o cidadão tem o seu tom de pele negra aprovado pelo “campo progressista”, ou não tem salvação possível. A “branquitude”, em si, é um delito. O sujeito não precisa ser da Ku Klux Klan, ou a favor do apartheid, para ser racista; basta ter nascido branco.

É obrigatório, para todo cidadão que queira ter uma ficha politicamente limpa neste mundo, ir à rua, protestar ou manifestar-se em público contra “o fascismo”. Não está disponível a opção de pensar em outra coisa, ou simplesmente de não pensar no assunto; pelo novo catecismo hoje em vigor, o “silêncio” equivale à prática dos delitos de racismo, machismo, exclusão social, negação da “diversidade”, injustiça, promoção da desigualdade e sabe-se lá quantas outras calamidades mais. Também é compulsória a militância ativa por um “planeta sustentável”. Seria muita sorte, para todos, se esse dever se limitasse à preservação da natureza, do ar puro e das geleiras; mas hoje em dia tudo isso está longe de ser suficiente. É indispensável, também, denunciar o excesso de bois, frangos e porcos na população animal.

Sua alimentação (e a dos animais) tem de ser orgânica. É proibido aceitar a mecanização da agricultura, o uso de fertilizantes, a aplicação de defensivos químicos contra pragas, as “grandes propriedades” e, em geral, a presença do capitalismo na atividade rural. O uso de hormônios para apressar o crescimento de frangos, por exemplo, está terminantemente proibido.
(Tem de ser permitido, e até pago pelos serviços sociais do Estado, quando se trata de dar hormônios para bloquear o desenvolvimento natural trazido pela adolescência a crianças “confusas” quanto ao seu sexo, como se diz; mas para frango de granja não pode.) A indústria, como um todo, é ruim. A produção de energia, hidroelétrica ou de qualquer natureza, é pior ainda. E o capital, então? Melhor nem falar.

Pelas novas regras, homens e bichos devem ter direitos iguais
Há dois meses a cidade americana de Portland, com uma população de quase 3 milhões de habitantes na sua área metropolitana, vem sendo destruída, incendiada e violentada por gangues que se descrevem como “antifascistas” — teoricamente, ainda em sinal de protesto contra a morte de um negro por um policial branco. O atual pensamento progressista sustenta que destruir propriedade pública e privada, agredir policiais e impedir o direito de ir e vir dos cidadãos de Portland é um direito dos militantes. O governo local do Estado e do município, controlado pela esquerda do Partido Democrata, acha muito justo. 

Mais que isso: reivindica-se que a cidade ganhe uma espécie de extraterritorialidade, como se fosse uma embaixada estrangeira ou reserva indígena, onde a autoridade pública não poderia ser aplicada e as leis norte-americanas não teriam valor. A mesma coisa é exigida pelo movimento antirracista em Seattle, com cerca de 4 milhões de habitantes e não distante de Portland. Os líderes querem que a polícia seja legalmente proibida de entrar em determinadas áreas dessas cidades, que o orçamento da segurança seja reduzido pela metade, que mais verbas públicas sejam entregues a “projetos de interesse da comunidade negra” e por aí se vai.

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“Julgar as pessoas é visto como uma conduta discriminatória”
O que mais? Mais tudo o que você quiser; a lista completa daria para encher uma Enciclopédia Britânica, e não é preciso chegar a tanto. Já deu para entender, não é mesmo? “Todos os limites que deram significado à experiência humana, por centenas de anos, estão sendo questionados e postos à prova”, disse em entrevista publicada pela Revista Oeste em sua última edição o sociólogo Frank Furedi. Isso é resultado, em sua visão, de uma crise moral — que por sua vez tem origem na crença, muito em voga hoje em dia, de que é errado fazer distinções e julgamentos. “Julgar as pessoas é visto como uma conduta discriminatória”, diz Furedi. “É o que se ensina nas escolas: ‘não julgue o colega’, ‘não existe bom ou ruim’, ‘não há certo ou errado’. Mas, se você começa a destruir os limites morais, cria-se uma mentalidade em que as pessoas se tornam intolerantes com os limites em geral.” Isso, na sua opinião, é estúpido. É mesmo.

A questão, a partir daí, é tentar enxergar para onde essa marcha da insensatez está nos levando. Ou, mais precisamente: o pensamento descrito acima, com todos os seus similares, será ou não será capaz de interromper o progresso das sociedades humanas, tal como ele é entendido hoje? A vida vai realmente mudar? Na prática, são essas as questões que interessam no curto prazo — que, como ensina a experiência, é sempre bem mais interessante que o longo. À primeira vista, a coisa toda está com a pior cara possível. Em sua comemoração do “Dia dos Pais”, a Natura, empresa do ramo de cosméticos, acaba de dar o título de “Pai do Ano” a uma mulher; há pouco tempo, o prêmio de “Miss Espanha” foi dado a um homem. 

Estátuas de Cristóvão Colombo são destruídas nos Estados Unidos, e murais em sua homenagem, fechados na Universidade de Notre Dame, para que ele pague, 500 anos depois, o crime de ter descoberto a América e, com isso, levado ao “genocídio dos povos indígenas”. Multinacionais bilionárias, que até anteontem se achavam exemplos superiores de tudo o que pode haver de bom na liberdade em geral (e econômica em particular), exigem que o Facebook e o Twitter formem comitês de censura para proibir a circulação de mensagens de “de direita/de ódio/extremistas” — algo como obrigar os Correios a examinar o conteúdo das cartas que recebem do público, e só entregar as que forem previamente aprovadas pela sua direção. Jornalistas são postos para fora (do The New York Times, digamos) por não se encaixar no modelo exigido pelo “coletivo” das redações.

O filme …E o Vento Levou, rodado em 1939, foi recentemente tirado de circulação por “racismo” só voltou ao ar com uma introdução “histórica”, equivalente a um pedido de desculpas, em que uma “ativista” negra faz a denúncia da “injustiça social” e do “desrespeito aos negros” que teriam sido praticados 81 anos atrás pelos produtores, diretor, atores e técnicos responsáveis por essa “narrativa”. Já mudaram o título que John Lennon deu em 1972 a uma de suas canções (Woman Is the Nigger of the World) pela mesma acusação — “racismo”. Fala-se em cotas na distribuição do Oscar; “minorias” deveriam ter um número prefixado de estatuetas. Universidades norte-americanas estão criando cerimônias de formatura separadas para brancos e negros — por exigência de “lideranças” negras. Professores considerados de “direita” são cada vez mais proibidos de dar cursos, ou mesmo fazer uma palestra, no ensino superior. Uma confederação de empresas internacionais ameaça fazer boicote econômico contra os produtos agrícolas e a indústria de alimentos do Brasil caso continue o que descreve como “destruição da Amazônia”. O presidente da França não gosta do agronegócio brasileiro nem o rei da Noruega, o papa Francisco, o Comitê de Diversidade do Conselho da Europa e nove entre dez intelectuais atualmente vivos.

Tendem a dar mais atenção às ideias “corretas” os que menos precisam trabalhar para viver
Tudo bem — mas o futuro vai ser mesmo como essa gente está querendo, ou dizendo que quer? Isso aqui não é uma aula de sociologia; é só um artigo de revista. Em todo caso, a prudência e o bom senso recomendam que se pense um pouco mais nas realidades antes de chamar o padre para dar a extrema-unção ao mundo como ele é hoje. É provável que a resposta mais aproximada a essa pergunta seja a seguinte: depende. O Novo Testamento da Virtude Política deve gerar mais efeitos concretos nos setores da sociedade mais sensíveis à crença de que a vida possa realmente ficar melhor desse jeito; onde essa fé não existir, ou for apenas morna, o essencial não muda.

Os efeitos vão variar, muito possivelmente, de acordo com as classes sociais — quanto mais pobre, ou menos rica, for a classe, menos importância vai se dar à ideia de que um pai pode ser mulher, ou que se deva derrubar as estátuas de Cristóvão Colombo, mesmo porque a maioria nem sabe quem foi Cristóvão Colombo.
Da mesma forma, tendem a dar mais atenção às ideias “corretas” os que menos precisam trabalhar para viver; os que mais trabalham, sobretudo nas ocupações mais modestas, pesadas e mal pagas, devem ser os que menos tempo vão dedicar à igualdade de direitos entre animais e seres humanos, ao desarmamento da polícia ou ao aquecimento da calota polar.

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Da mesma forma, é melhor esperar um pouco antes de marcar uma data para o fim do capitalismo nos Estados Unidos — ou no Japão, na Europa e no resto do mundo. Alguém se lembra do movimento Occupy Wall Street, que ia acabar com a bolsa de valores e os bancos norte-americanos dez anos atrás? Pois é. Há valores diferentes, e muito, conforme o lugar do mundo onde você está. É duvidoso que a China, por exemplo, com o seu 1,4 bilhão de habitantes, esteja interessada nas queixas, exigências e necessidades da etnia negra, ou de qualquer outra. E a Índia? Seria um país negro? Ou sofreria de “branquitude”? Não dá para dizer — e lá se vai mais 1,3 bilhão de cidadãos. As “causas” defendidas nas ruas norte-americanas, europeias ou brasileiras seriam as mesmas dos países da Ásia, ou das sociedades muçulmanas?

Quanta importância se dá aos direitos das mulheres no Paquistão ou na Arábia Saudita? Mais de 3 bilhões de pessoas, incluindo China e Índia (onde não passa pela cabeça de ninguém abolir o sistema de castas, que exige direitos diferentes conforme a definição social do indivíduo), vivem em regimes onde se aceita sem maiores problemas a ausência da liberdade, da igualdade ou da democracia. É gente que não acaba mais; devem saber o que estão fazendo. Os valores defendidos em Seattle não são os que se levam em conta em Xangai. O que as pessoas têm em comum, no mundo de hoje, é muito menos do que aquilo que as separa.
Em suma: quem acredita que não pode mais haver limites para nada neste mundo precisaria combinar isso com os chineses. Além dos russos, é claro.
Leia a entrevista com Frank Furedi
Mais sobre agronegócio na entrevista com Evaristo de Miranda, chefe da Embrapa Territorial

LER MATÉRIA COMPLETA - Revista Oeste 

J.R. Guzzo, jornalista