O Estado de S. Paulo
Como guardião da Constituição, em vez de flexibilizar o disposto na Lei 13.964/2019, o STF deveria ter exigido o mais estrito cumprimento da lei
[O Supremo precisa ser moderado? ainda que só no tocante ao seu furor legiferante]
Com especial habilidade, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, soube desfazer o que poderia se tornar uma crise de maior vulto, no caso do habeas corpus em favor de André do Rap. A finalidade da Justiça é dar solução aos conflitos, e não aumentá-los ou perpetuá-los.
O
mérito do ministro Luiz Fux foi possibilitar uma rápida resposta do colegiado,
colocando sob escrutínio do plenário do Supremo sua decisão de suspender a
liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio. Diante de um cenário no qual a
Corte é diariamente questionada – e muitas vezes afrontada –, o fortalecimento
institucional do STF inclui necessariamente o fortalecimento de sua
colegialidade.
[com maestria incomparável, precisão, exatidão e forte componente didático, o jornal O Estado de S. Paulo mostra nesta matéria que o Brasil necessita realmente de um PODER MODERADOR.
Sem mencionar tal necessidade, leva os leitores ao entendimento, à opinião, que se faz necessário um órgão com o poder final.
Que sejam preservados os Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, mas que se instale um QUARTO PODER que dê a palavra final, inclusive contendo o furor legiferante da Suprema Corte que a leva a desrespeitar o principio: Corte constitucional não redige lei.
O fuzuê da semana passada com a fuga autorizada de um famoso traficante, motivou a Corte Suprema:
Após horas e horas de discussão a Corte decidiu por nove votos contra um confirmar a decisão do presidente da Corte mandando prender um condenado, duas condenações confirmadas em segunda instância, que outro ministro mandou soltar - decisão totalmente inócua, de valor zero, já que o criminoso fugiu e não voltará ao Brasil, exceto se assim quiser.
Ao tempo que os votos que sustentaram a decisão acima, deixavam a impressão de fortalecimento do entendimento favorável à colegialidade - devendo assuntos sensíveis serem submetidos ao plenário - foi registrado nos votos que formaram o placar vencedor uma "lembrete'' ao presidente do STF no sentido de ter sempre em conta que o apoio maciço à decisão presidencial era em caráter excepcionalíssimo, por não ser a presidência do tribunal órgão revisor.
Para deixar mais claro ainda o caráter supremo das decisões monocráticas o ministro Barroso, horas depois, em decisão monocrática, suspendeu o mandato de um senador da República. Registre-se que posteriormente, após ampla divulgação da decisão solitária, decidiu submeter o tema ao plenário.
De tudo ficou claro que a decisão apoiando o presidente foi mera formalidade, na prática prevaleceu decisão monocrática contrária a da colegialidade; o entendimento solitário de um ministro é quem decide se atua de forma monocrática (ou autocrática?) ou submete o assunto ao exame do colegiado?
Submissão prévia, já que exame posterior pode apresentar resultado inútil.]
Por 9 votos a 1, o plenário do STF manteve a prisão preventiva de André do Rap, confirmando a decisão do ministro Luiz Fux. Os votos ressaltaram o caráter excepcionalíssimo da possibilidade de o presidente da Corte suspender ato jurisdicional de outro ministro do STF, como ocorreu no caso. A presidência do tribunal não é órgão revisor, e o que ocorreu neste caso não é a regra. As exceções devem continuar sendo exceções.
O entendimento fixado pela maioria dos ministros do Supremo não apenas acrescenta elementos inexistentes na lei, como acaba por excluir precisamente uma das principais inovações que o Poder Legislativo trouxe com a Lei 13.964/2019 – a ilegalidade de toda prisão preventiva que não é renovada periodicamente.
Já o Supremo disse: a inobservância da reavaliação no prazo de 90 dias não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos.
Fosse de fato ilegal, como dispõe a Lei 13.964/2019, haveria de ser concedida a ordem de habeas corpus em favor de quem está preso preventivamente sem a devida reavaliação periódica dos fundamentos.
Na
tentativa de justificar a decisão do Supremo, alegou-se que os ministros
fizeram uma interpretação sistêmica [que se soma à conhecida interpretação criativa] do Código de Processo Penal, adequando a
literalidade da lei ao ordenamento jurídico como um todo, em especial aos
princípios constitucionais relativos à ordem pública. Chama a atenção, em
primeiro lugar, a proximidade dessa tese com o ativismo judicial, postura
habitualmente condenada por quem agora defende o dever do Supremo de matizar as
consequências da Lei 13.964/2019.
O
equívoco da decisão do STF não foi, no entanto, uma suposta aplicação sistêmica
da lei. O problema foi precisamente ignorar o sentido do art. 316, § único do
Código de Processo Penal, cujo objetivo não é “soltar bandido”, tampouco
impedir o cumprimento de prisões preventivas fundamentadas. Ao fixar a
ilegalidade das prisões preventivas que se estendem no tempo sem a devida
renovação, a Lei 13.964/2019 veio exigir que os órgãos do sistema de Justiça
funcionem adequadamente. Essa é a interpretação literal, teleológica e
sistêmica da lei.
Consciente
das resistências e dificuldades para implantar um sistema de Justiça que
respeite de fato a liberdade, o legislador fez uma clara opção. Fixou de forma
inequívoca a ilegalidade do que não é feito corretamente na tentativa de que
tudo seja realizado em conformidade com a lei. Por isso, como guardião da
Constituição, em vez de flexibilizar o disposto na Lei 13.964/2019, o Supremo
deveria ter exigido o mais estrito cumprimento da lei – em respeito ao
Legislativo e em respeito à liberdade protegida pela lei. Corte constitucional não
redige lei.
Opinião - O Estado de S. Paulo - 17 outubro 2020