O Globo
Um governo deteriorado
Ainda ontem, quando novo salto levou os óbitos à casa dos 700 diários, caminhando para a trágica marca de 10 mil mortes devido à Covid-19, Bolsonaro fez troça sobre uma churrascada que pretende realizar hoje no Palácio da Alvorada. O estilo provocador do presidente já é conhecido de todos. Ele pretende constranger aqueles que lhe impõem limites, mesmo instituições como o Supremo, que tem o papel de indicar ao presidente quando ele saiu do que a Constituição determina.
Foi assim que assessores como o General Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) ou o chefe do Gabinete Civil General Braga Neto, ou o Chefe da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, transformaram-se em meros cumpridores de ordens, perdendo a qualidade de formadores de políticas governamentais. Os três estão arrolados como testemunhas no inquérito do Supremo sobre a tentativa de interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal, e em conjunto sentiram-se afrontados pelos termos usados pelo ministro Celso de Mello ao convoca-los.
O que é uma formalidade burocrática, afirmar que os que não comparecerem na data marcada terão que fazê-lo “coercitivamente, ou debaixo de vara”, foi considerado uma afronta aos militares, que se consideram acima de qualquer suspeita. [formalidade burocrática, em desuso e totalmente desnecessária tendo em conta o conhecimento intelectual dos ofendidos - que lhes permite saber os direitos e deveres de testemunhas regularmente intimadas.
Tais palavras foram usadas por um ministro da Suprema Corte que ainda não aceitou que JAIR BOLSONARO é o Presidente da República Federativa do Brasil, e que dirige sua rejeição até mesmo aos auxiliares diretos da autoridade máxima da Nação brasileira.]
O mesmo tratamento foi dado aos deputados que estão convocados e demais servidores públicos, sem que os termos fossem contestados. Esse sentimento de estar acima dos procedimentos normais em casos como esse desbordou em uma nota oficial do Clube Militar, que acusa o ministro decano do Supremo de ter ódio do governo federal, e considera “falta de habilidade, educação, compostura e bom-senso” o tratamento recebido pelos militares.
Esse sentimento alimenta as convocações para manifestações este fim de semana, [realizadas dentro da normalidade.] contra o Supremo e o Congresso, e a favor da intervenção militar. Essa é uma demonstração de que os militares não deveriam participar da vida política do país, pois vestem ternos civis, mas se consideram uma casta diferenciada. O recente balão de ensaio, que não prosperou diante da reação negativa, de colocar o General Luiz Eduardo Ramos no comando do Exército em lugar do General Edson Leal Pujol, faz parte dessa paranóia de Bolsonaro de só ter em seu entorno pessoas que digam amém sem contestar.
O General Pujol tem uma postura mais contida na relação com a política, e teria irritado o presidente ao dar o cotovelo para cumprimentá-lo em uma solenidade, deixando-o com a mão no ar. Uma demonstração de que segue as normas internacionais e nacionais de afastamento social, interpretada por Bolsonaro como uma atitude afrontosa. O que denota um governo deteriorado por uma visão autoritária do poder.
Merval Pereira, jornalista - O Globo