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sexta-feira, 16 de setembro de 2022

As ilegalidades da operação contra oito empresários - Revista Oeste

Thaméa Danelon

 Todos os ministros precisam se debruçar e se manifestar a respeito dessas graves violações não só à Constituição e à legislação, mas aos direitos fundamentais

Foto: Shutterstock
Foto: Shutterstock

Nosso sistema jurídico é o denominado Sistema Acusatório: um conjunto de normas — leis e Constituição — que disciplinam o funcionamento de uma investigação criminal e de uma ação penal proposta contra um réu. Na República brasileira, os órgãos responsáveis por conduzir a investigação de um crime são apenas dois: a Polícia e o Ministério Público (MP), sendo que seus integrantes ingressaram nessas funções por meio de concursos, sem qualquer nomeação política.

Escrivães, delegados, promotores de Justiça e procuradores da República. Somente estes servidores de Estado têm legitimidade constitucional para apurar os crimes. 
E o Ministério Público tem o papel exclusivo de ajuizar uma ação penal pública contra alguém.

Durante as investigações, o juiz permanecerá afastado dessas apurações, sendo vedado a ele instaurar investigações de ofício e determinar diligências, pois, como já dito, a realização de apurações para a coleta de provas sobre um crime compete exclusivamente à Polícia e ao MP. Em certas ocasiões, é necessária a realização de uma ação mais invasiva para colher evidências de um crime, quando se busca, por exemplo, uma prova protegida por sigilo ou garantias constitucionais.

A título de ilustração, podem-se mencionar um documento com movimentações financeiras, por exemplo, ou o Imposto de Renda, informações essas que são protegidas pelo sigilo bancário e fiscal. Nesses casos, para que os investigadores possam ter acesso a esses dados, é necessária uma ordem judicial, um mandado. Assim, o delegado ou o membro do MP e somente eles poderão requerer ao juiz o levantamento desses sigilos, para que a investigação possa continuar.

A intervenção pontual de um juiz na investigação ocorrerá também quando houver a necessidade de uma busca e apreensão em endereços dos investigados ou para decretar uma prisão. Assim, caberá aos investigadores pedirem os respectivos mandados ao juiz.  
Depois da coleta de todas as evidências necessárias, como provas documentais, testemunhais, perícias e, se for o caso, essas medidas mais invasivas, a autoridade policial concluirá a investigação e o Ministério Público avaliará se há, de fato, prova da existência de um crime (a denominada “materialidade”) e também os indícios de que aquele investigado é potencialmente o responsável por ter praticado o crime. Nesse caso, o promotor ou procurador da República irão processar criminalmente aquele que praticou a infração, o qual, futuramente, se tornará réu. O advogado — ou defensor público — realizará a defesa, e, ao final, o juiz irá julgá-lo.
 
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Monarquia absolutista
É dessa forma que funciona o nosso Sistema Acusatório.
 
Assim como o MP não pode defender nem julgar o criminoso, o juiz é impedido de investigá-lo, acusá-lo ou defendê-lo, e, principalmente, de ser a própria vítima do crime. Em resumo, o Sistema Acusatório é o sistema jurídico em que as funções de acusar, defender e julgar estão repartidas em órgãos distintos.

O sistema contrário ao nosso é o Inquisitório, que se caracteriza pela concentração dessas três atividades em uma única pessoa, tal como ocorria nas monarquias absolutistas, em que o rei detinha o poder para investigar, acusar e julgar quem bem entendesse. 

O mesmo acontecia de forma semelhante na época da Inquisição (na qual o nome Sistema Inquisitório foi inspirado), quando a Igreja aglutinava todas essas funções.

Cena medieval da Inquisição | Ilustração: Shutterstock

Para que o Estado Democrático de Direito tenha plena aplicabilidade, é primordial que o Sistema Acusatório seja respeitado e que a função de cada instituição seja assegurada. Atualmente, contudo, temos testemunhado que o Supremo Tribunal Federal não vem honrando esse sistema, fato constatado nos Inquéritos das “Fake News”, dos “Atos Antidemocráticos” e das “Milícias Digitais”.

Uma operação que evidencia esses desrespeitos foi a realizada em 23 de agosto deste ano contra oito empresários que supostamente estariam praticando crimes contra o Estado. 
 A análise dessas medidas elucida e exemplifica bem essa problemática: além da não observância do Sistema Acusatório, o ministro Alexandre de Moraes não seguiu o que está no Código de Processo Penal nem na Constituição.

Uma série de ilegalidades
Os empresários que sofreram as buscas e outras constrições jurídicas foram Luciano Hang (Lojas Havan), Afrânio Barreira Filho (Restaurante Coco Bambu), José Isaac Peres (Rede Multiplan), Marco Aurélio Raymundo (Mormaii), Meyer Joseph Nigri (Tecnisa), Ivan Wrober (W3 Engenharia), José Koury (Barra World Shopping) e Luiz André Tissot (Grupo Sierra).

São diversas as irregularidades que envolvem tal operação. Primeiro, os oito empresários não têm foro privilegiado perante o STF, logo, não poderiam ser investigados por aquela Corte — a jurisdição adequada é a 1ª Instância. Além disso, as conversas privadas não deveriam ser utilizadas, pois violam o direito à intimidade previsto na Constituição, e o próprio Superior Tribunal de Justiça decidiu que “prints” de conversas por aplicativo não podem ser usadas como provas. Importante mencionar que a investigação foi instaurada exclusivamente com base em uma reportagem jornalística, e a primeira diligência investigatória determinada pelo ministro foi a busca e apreensão nas residências e nos escritórios dos empresários, sendo esta medida extremamente drástica e invasiva.

O que mais chama a atenção nesse caso é a ausência da prática de crimes. Ou seja, a inexistência de qualquer infração penal pelos oito empresários

Também não foi previamente verificada a veracidade dessas conversas, sendo que Alexandre de Moraes partiu do pressuposto de que todas aquelas mensagens eram verdadeiras e fidedignas. Outro ponto relevante: essa investigação ocorreu no Inquérito das Milícias Digitais, apuração aberta de ofício (sem pedido da Polícia ou do MP), fato que viola o Sistema Acusatório, pois, como já explicado, um juiz não pode instaurar uma investigação nem determinar diligências sem que haja requerimento da Polícia ou do Ministério Público. Nesse caso, nem a PF e tampouco o MPF requereram as quebras de sigilo bancário e o bloqueio das redes sociais dos empresários. 

O pedido foi feito por políticos, como o senador Randolfe Rodrigues. Pessoas alheias às investigações, entretanto, não têm qualquer legitimidade para isso.

O senador Randolfe Rodrigues | Foto: José Cruz/Agência Brasil

Outro ponto que deve ser mencionado é o fato de o ministro Alexandre de Moraes ser uma vítima do delito (delito este, na minha análise, inexistente). Logo, ele estaria impedido de atuar no processo, de acordo com o Código de Processo Penal. No que se refere aos supostos ilícitos praticados, é importante frisar que os crimes contra o Estado Democrático pressupõem a ocorrência de uma violência ou grave ameaça por parte de seus autores e não se tem a menor notícia de que esses senhores de 60, 70 e 80 anos de idade tenham empregado violência ou grave ameaça contra o exercício de qualquer dos Poderes da República (no linguajar jurídico, seria a ausência de tipicidade).

Outra irregularidade foi a ausência de parecer do procurador-geral da República sobre todas as medidas adotadas, fato que contraria o que está disposto na legislação, pois o membro do Ministério Público deve ser ouvido antes de o juiz decretar qualquer tipo de diligência, principalmente as ostensivas (ou invasivas), pois, além de o MP ser o titular exclusivo da Ação Penal Pública, ele também atua como fiscal da lei. Em relação ao bloqueio das redes sociais do empresário Luciano Hang — que tinha mais de 5 milhões de seguidores — e dos demais investigados, pode-se afirmar que essa medida não apresenta qualquer justificativa, nem razoabilidade e não é proporcional, pois não há evidências de que esses perfis tenham qualquer conteúdo ilícito.

O empresário Luciano Hang | Foto: Redes sociais

Ainda que se considerasse que as falas privadas fossem criminosas, esses “crimes” teriam ocorrido dentro de um grupo de WhatsApp, e não nas redes sociais dos empresários. Nessa mesma linha de raciocínio, o bloqueio e o levantamento do sigilo das contas bancárias são medidas completamente desproporcionais, pois não se prestam a apurar o “suposto crime cometido pela palavra escrita”, vez que a análise dos extratos bancários não será necessária para provar o “eventual ilícito” dos investigados.

Houve ainda a violação ao Princípio da Ampla Defesa, pois não foi entregue aos advogados dos empresários a cópia da decisão que determinou a operação. Ressalte-se que a própria Procuradoria-Geral da República não teve acesso à decisão judicial nem aos autos com a necessária antecedência.

Por fim, o que mais chama a atenção nesse caso é a ausência da prática de crimes. Ou seja, a inexistência de qualquer infração penal pelos oito empresários, pois as mensagens privadas que embasaram essas medidas policiais tão drásticas e invasivas não possuem qualquer conteúdo criminoso. Trata-se apenas de opiniões políticas, tuteladas pela liberdade de expressão e pela livre manifestação de pensamento, direitos esses protegidos pela Constituição.

Não ocorreram as tratativas de qualquer golpe de Estado, nenhum ato preparatório foi realizado e, principalmente, não houve o emprego de violência ou grave ameaça. Algumas das mensagens trocadas: (a) “Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo”; (b) “Quero ver se o STE (sic) tem coragem de fraudar as eleições após um desfile militar na Av. Atlântica com as tropas aplaudidas pelo público”; (c) “O 7 de setembro está sendo programado para unir o povo e o exercito (sic) e ao mesmo tempo deixar claro de que lado o exercito (sic) está. Estrategia (sic) top e o palco será o Rio A cidade ícone brasileira no exterior. Vai deixar muito claro”; (d) “Golpe foi soltar o presidiário!!! Golpe é o “supremo” agir fora da constituição! Golpe é a velha mídia só falar merda”.

Diante de todas essas inconstitucionalidades e ilegalidades ocorridas na operação do dia 9 de setembro, a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, ofereceu recurso ao ministro Alexandre de Moraes requerendo a anulação da operação, a revogação de todas as medidas cautelares contra os empresários e, por fim, o trancamento da investigação. Lindôra constatou a ocorrência defishing expedition”, ou seja, a pescaria probatória, em que são realizadas várias diligências invasivas, sem um propósito específico e claro, com intuito de tentar descobrir algo incriminador contra alguém. Este fato tornaria ilícitas todas as supostas provas obtidas com emprego dessa técnica irregular.

cpi da covid
Lindôra Araújo, vice-procuradora-geral da República, -
 Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Em sua manifestação técnica e extremamente coerente, a vice-procuradora teceu severas críticas à decisão do ministro relator ao afirmar (1) que a operação acarretou indevida restrição de direitos fundamentais dos investigados, além de (2) uma total invasão de privacidade de uma conversa aleatória entre cidadãos”, caracterizando (3) uma espécie de polícia do pensamento característica de regimes autoritários; e que os bloqueios das contas bancárias seriam uma espécie de (4) ilícito confisco estatal, pois atingiu todos os recursos financeiros dos empresários, sem que houvesse qualquer comprovação da eventual origem ilícita desses valores. Ao final, é requerida a anulação de todas as diligências praticadas e o trancamento da investigação.

Ao analisar o recurso oferecido por Lindôra, Moraes não acatou e nem sequer analisou os argumentos jurídicos abordados pelo MPF. No seu entendimento, o recurso apresentado estaria fora do prazo legal. Na minha análise, entretanto, não haveria base jurídica para essa decisão. No dia 12 de setembro, Lindôra Araújo apresentou novo recurso ao STF, reforçando o pedido de anulação da decisão que determinou as diligências e as medidas cautelares. 

Também foi salientado que o recurso anteriormente oferecido o Agravo Regimental — foi apresentado dentro do prazo, sendo, pois, tempestivo. Assim, foi requerida a reconsideração da decisão em caráter de urgência. Não havendo reconsideração por parte de Alexandre de Moraes, foi pleiteado que o recurso fosse enviado ao plenário do STF.

Diante das manifestações da vice-procuradora, é primordial e urgente que o colegiado do STF analise o recurso do MPF.  
Todos os ministros precisam se debruçar sobre os pontos trazidos e se manifestar a respeito dessas graves violações. 
Não só à Constituição e à legislação, mas aos seguintes direitos fundamentais e individuais: a liberdade de expressão, a livre manifestação do pensamento, a inviolabilidade de domicílio, a intimidade, a propriedade privada, a ampla defesa e, por fim, o Sistema Acusatório. 
 
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Thaméa Danelon é procuradora da República, mestre em Direito Político e Econômico, professora de Processo Penal, criadora do curso “Justiça e Corrupção”

Thaméa Danelon - Revista Oeste