Faltam hoje cerca de 6,3 milhões de moradias, um problema que se eterniza e do qual o desabamento do prédio em São Paulo é um símbolo
Inevitável
que a queda do Wilton Paes de Almeida com seus 24 andares tomados pelo fogo
colocasse em lugar de destaque na agenda do país o renitente problema do
déficit habitacional. Julgamentos importantes no Supremo, crise política,
escândalos que rondam o Planalto, fase de preaquecimento da campanha eleitoral,
tudo ficou em segundo plano diante das cenas geradas pela tragédia, seus mortos
e desaparecidos. As características do desastre são especiais: famílias
exploradas por um desses “movimentos” de sem-teto — no caso, o de “Luta Social
por Moradia”, MLSM; beneficiário de pagamentos dos “inquilinos” em troca de
condições insalubres e precárias, tanto que aconteceu o incêndio por um
curto-circuito. As evidências de exploração da pobreza são abundantes.
O cenário
do drama é a absoluta incapacidade de o poder público equacionar a questão da
falta de moradia, principalmente nas cidades, para famílias de baixa renda.
Trata-se de uma incompetência histórica. Já no começo do século XX o prefeito
carioca Pereira Passos fez reformas modernizadoras na cidade inspiradas em
Paris. Derrubou imóveis que eram focos de doença, arejou o centro do Rio, mas
se esqueceu de planejar moradias adequadas para as famílias desalojadas pela
reforma. A favelização ganhou impulso. Nem a toda-poderosa ditadura militar
resolveu o problema. Criou o Banco Nacional da Habitação (BNH), as cooperativas
habitacionais, estimulou a captação de poupança para financiar moradias, mas
falhou, apesar dos avanços. O mecanismo da correção monetária com o tempo
passou a realimentar a própria inflação, e a criação de subsídios terminou
gerando um dos esqueletos bilionários no Tesouro, na conta do contribuinte.
Veio a
redemocratização, a estabilização da economia, com o Plano Real, e o “déficit
habitacional” continuou sendo um termo que se eterniza na lista de heranças
malditas de décadas. A tragédia do Wilton Paes de Almeida deriva da mazela. Se
o poder público e a sociedade houvessem conseguido ao menos conter o
crescimento desta chaga, não haveria famílias prisioneiras de grupos
organizados que usam a carência de moradias nas cidades para faturar dinheiro
e/ou apoio político-eleitoral. Pois uma das moedas pagas por quem não tem onde
morar, em troca de um abrigo, é comparecer a manifestações desses “movimentos”.
E, em outubro, dar votos. A exploração é a mesma, muda a forma de pagamento.
Hoje, é de pelo menos 6,3 milhões de
moradias, em todo o país, concentradas nas cidades. Por óbvio, a tendência é a
mesma nas maiores regiões metropolitanas do país, São Paulo e Rio. Apenas no
Wilton Paes de Almeida, uma caixa de fósforos habitada, eram 146 famílias.
Haveria no centro de São Paulo 70 dessas ocupações. Pelo jeito, um rentável
negócio pecuniário e político. Sugestivo que a principal causa da falta de
moradia seja o custo do aluguel. Quer dizer, no centro da questão continua a
impossibilidade de se prover moradia a preços compatíveis com a renda das
faixas de poder aquisitivo mais baixo. Com todos os subsídios. Os números
sugerem também incompetência gerencial.
Sem falar em corrupção. Mas não adianta
apenas denunciar os “movimentos”. Eles não teriam a força que ostentam se não
contassem com a ajuda da incompetência de governos, de todos os partidos. São
Paulo, feudo do PSDB, não resolveu a questão; e o PT, 13 anos em Brasília,
lançou o Minha Casa Minha Vida e cometeu o conhecido erro de fazer conjuntos
habitacionais de má qualidade e longe de tudo. A herança maldita persiste.
Editorial - O Globo