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terça-feira, 26 de março de 2019

Cadáver verde

Vou repetir: chegamos lá, o cadáver humano agora será lixo orgânico

Anos atrás, na época do COP 15, a conferência ambientalista em Copenhague, escrevi uma coluna aqui na Folha ("Cadáver verde") em que previa o uso de corpos humanos para alimentação hipervegana. O raciocínio, numa chave distópica, era que um dia a ciência iria descobrir a senciência (se você não sabe o que é, olhe no Google) nos vegetais, e toda a gente bacana contra a violência na alimentação, herdeiros do utilitarista Peter Singer e seu "Animal Liberation", seria obrigada a concluir que a única alimentação sustentável e ética possível seria comer cadáveres humanos. Cheguei perto da realidade.

Você, curioso, talvez se pergunte: como alguém pode prever coisas assim? Simples: aposte no ridículo, na hipocrisia social, no interesse econômico e, antes de tudo, no pior travestido de bem. A fórmula é quase infalível. Ia esquecendo! Acrescente uma pitada de niilismo inconfesso.  No caderno Mundo do dia 3 de março, a Folha publicou uma reportagem fundamental que descrevia o processo de tramitação de uma lei no estado de Washington, na costa oeste americana (uma espécie de paraíso do partido democrata, um parque temático que poderia se chamar "nirvana hipster"), segundo a qual cadáveres humanos poderão ser usados como adubo, ao invés de cremados ou enterrados (cremar está na moda, inclusive no estado em questão). O termo científico é "compostagem humana". O termo em si significa uma espécie de reciclagem de lixo orgânico. No caso, o lixo é o cadáver humano. Você entendeu? Vou repetir para fins didáticos: sim, chegamos lá, o cadáver humano agora será lixo orgânico.

O filósofo britânico Edmund Burke (1729-1797) escreveu certa feita que a sociedade era uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram. O mesmo autor, comentando uma cena em sua imaginação que viria a acontecer na realidade, dizia que o povo, ao invadir os aposentos da rainha durante a Revolução Francesa, descobriria que uma rainha era apenas uma mulher, e uma mulher, apenas um animal.  Esses trechos se constituem em fundamento do que a filosofia posterior chamaria de "imaginação moral". A expressão intitula um livro primoroso escrito pela historiadora americana Gertrude Himmelfarb, recentemente publicado pela É Realizações, "Imaginação Moral". Leia.


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A ideia é que a moral é dependente da função imaginativa depositada em experiências ancestrais narrativas, afetivas e mesmo estéticas. Adam Smith, no século 18, e John Stuart Mill, no 19, referiam-se a duas dimensões de modo semelhante: "moral sentiments" (sentimentos morais) e "moral affection" (afeto moral), respectivamente. Haveria na moral um estrato afetivo, estético, imaginativo, narrativo, alheio à lógica geométrica da ciência? Sim. Segundo o conceito de imaginação moral, uma vez que você dilacera o tecido narrativo da moral com argumentos econômicos, calculadores e sofistas (Burke, de novo) você abre um abismo no comportamento humano que jamais será organizado moralmente apenas pela lógica racional (sinto muito, Kant), e menos ainda pela científica. Da compostagem humana, chegaremos a comer cadáveres humanos porque um ser humano é apenas mais um animal.
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Matéria Completa - Folha de S. Paulo - Luiz Felipe Pondé