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segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Devagar, quase parando




Uma nova radiografia do ensino básico, divulgada pelo MEC, mostra que a imensa maioria dos alunos não aprendeu quase nada e seguirá assim até sair da escola


Em qualquer país seriamente comprometido com seu desenvolvimento, garantir aos estudantes que concluam o percurso escolar com boa capacidade de pensar, produzir e inovar está longe de ser um feito acima do comum: é lição de casa elementar. Pois o Brasil vem falhando na tarefa e permanece enredado em notas vermelhas, sem dar sinais de ganhar fôlego para correr em busca da excelência. Na verdade, o país está muito distante de um ensino ao menos decente. Uma nova radiografia da escola brasileira, divulgada pelo Ministério da Educação (MEC) na quinta-feira 30, revela um desastre em todos os níveis e traz uma constatação dolorosa. “Os estudantes vão passando de uma série a outra, mas não avançam quase nada na escala do conhecimento”, diz Maria Inês Fini, presidente do Inep, órgão ligado ao ministério que produziu o levantamento.

Os dados foram extraídos da Prova Brasil, teste de matemática e português aplicado a 5,4 milhões de alunos das redes pública e privada. Eles compõem o Saeb, termômetro que capta o nível dos estudantes no 5º e no 9º anos do ensino fundamental e no 3º ano do médio, quando muitos jovens estão às vésperas de tentar uma vaga na universidade. É justamente nesse patamar que o cenário fica mais dramático. Em matemática, apenas 5% dos alunos se situam na faixa adequada, ou seja, têm o conhecimento esperado para a série que estão cursando. Os demais 95% oscilam entre o nível básico, que exige recuperação contínua para acompanhar a classe, e o insuficiente, em que o aluno só seguirá adiante se passar por uma intervenção pedagógica; do contrário, ficará retido na série em que está. O alívio poderia vir da prova de português, mas não vem, e a situação até piora: apenas 1,7% aparece na faixa adequada.


VEJA teve acesso a questões respondidas por alunos de diferentes idades na Prova Brasil. Uma delas pede a crianças de até 8 anos (supostamente alfabetizadas) que olhem para a imagem de uma pipoca e assinalem entre quatro opções a palavra escrita: uma de cada cinco marcou pijama, piloto ou pirata. Elas também tropeçaram na proporção de um para cinco ao contar os nove balões nas mãos de um palhaço. A defasagem nos primeiros anos escolares tende a se agravar conforme a complexidade aumenta sem que dúvidas básicas tenham sido dissipadas. “O conhecimento é uma construção em degraus. Se há falhas graves na base, a estrutura superior fica comprometida”, compara o professor de matemática Bruno Lima, do Colégio de A a Z, no Rio de Janeiro.

Os obstáculos não vencidos na largada podem se fazer sentir ao longo de toda a trajetória acadêmica, até o ensino médio. O Saeb ajuda a dimensionar o problema mostrando como questões consideradas de baixíssima dificuldade assombram os jovens. Uma fábula simples traz como protagonista uma raposa espertalhona. Ao final, a pergunta: a palavra “ladina” significa que a raposa é esperta, rápida, cuidadosa ou engraçada? Mesmo com a deixa do texto, um de cada quatro errou. “Um aluno do 6º ano do ensino fundamental ou saberia o significado de cara ou faria essa interpretação tão simples”, diz a professora de português Rafaela Simões. Quando o desafio era completar a sequência aritmética 3, 7, 11…, outra má surpresa: 56% não sabiam.


O que preocupa não é apenas o retrato do momento traçado pelo MEC, mas a sequência de resultados que mostram a educação brasileira ora avançando em marcha lenta, ora retrocedendo. De duas décadas para cá, a única subida de patamar no Saeb ocorreu no 5º ano do ensino fundamental: o salto, porém, foi do muito ruim (insuficiente) para o ruim (básico). O 9º ano, que marca o fim do ciclo fundamental, manteve-se na linha de insuficiência, enquanto o ensino médio, por incrível que pareça, regrediu de 3 para 2 nesse nível em que o aluno precisa parar e preencher as lacunas de aprendizado antes de poder seguir em frente. De modo geral, é mais fácil elevar a qualidade do ensino nas séries iniciais. “São anos em que uma única professora cuida da turma. Depois, há um professor por disciplina, e ele costuma receber uma educação teórica e distante das reais necessidades da escola”, observa Mozart Neves Ramos, diretor de inovação do Instituto Ayrton Senna. Às vezes, nem a formação necessária existe: quase metade dos docentes não tem diploma específico para a matéria que ensina, segundo o Censo Escolar.

O levantamento do MEC mapeou a qualidade nos 26 estados, mais o Distrito Federal. Daí se originaram rankings para os três níveis de ensino avaliados. As redes públicas de Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Espírito Santo aparecem nas primeiras colocações em pelo menos dois deles. Alguns padrões se repetem no topo nacional. “Uma das características em comum nesses estados é a adoção de políticas pensadas para resolver problemas típicos de suas redes, no lugar de copiar modelos genéricos”, explica João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto. Oliveira acrescenta outros dois fatores essenciais para um bom desempenho no longo prazo: a integração de estados e municípios e a preservação de iniciativas bem-sucedidas mesmo que haja troca de governantes.

Os lugares que começam a adotar mais maciçamente o ensino integral têm colhido melhores resultados. Uma conta do MEC mostra que as chances de um aluno que estuda em turno estendido se inscrever no Enem são 15% mais altas — o que, em um país com população universitária ainda baixa (18% dos jovens), é algo a ser celebrado. 

Evidentemente, não basta investir um caminhão de dinheiro em mais horas na escola e esperar que a qualidade germine sem que o tempo seja utilizado para ampliar os horizontes do aluno. O Espírito Santo, que, segundo cálculos do Instituto IDados com base no relatório do MEC, surge em primeiro nos rankings de português e matemática do ensino médio, tem um bom exemplo a dar. O estado começou a apostar em um currículo mais enxuto e atento às tão propaladas habilidades do século XXI — produzir em equipe, afiar o raciocínio lógico para navegar em zona desconhecida, fazer uso da criatividade.

Cortar conteúdos de pouca utilidade e transformar a escola em um lugar menos enciclopédico e mais conectado ao que se passa fora de seus muros é o caminho percorrido por países com destaque na educação, como a Finlândia e vários dos asiáticos. O Brasil está prestes a dar uma necessária chacoalhada em seu antiquado ensino médio. A reforma, que planeja trocar o modelo único de hoje por um mais flexível, em que o aluno escolhe as disciplinas em que quer se aprofundar, está para deixar os gabinetes. “A implantação será gradual, a partir do ano que vem. Até 2022, a meta é que o novo ensino médio esteja funcionando em todo o país”, disse a VEJA o ministro da Educação, Rossieli Soares. A modernização de uma fórmula ainda cultivada por muitos, que vê na quantidade de conteúdo um sinônimo de ensino bom, não será fácil: exigirá professores treinados para trabalhar mais de perto uns com os outros e alterações significativas tanto no material didático como no próprio Enem.

No Brasil dos anos 1950 e 1960, prevalecia a ideia de que a educação seria uma consequência natural do desenvolvimento econômico. Foram tempos bicudos para o ensino: o país investia apenas 1,4% do PIB em seu vasto sistema educacional. Na década de 80, começou a ser difundida outra visão, válida até os dias de hoje: a de que boa educação não é efeito, e sim um poderoso motor para o desenvolvimento. Os cofres então se abriram para a sala de aula, o que ajudou a sanar mazelas básicas mas também propiciou um acúmulo de desperdícios. Fica o aviso aos candidatos à Presidência: já passou da hora de o Brasil usar o dinheiro da educação com mais inteligência e garantir um ensino de alta qualidade, indispensável para saltar de patamar.

Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598