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segunda-feira, 29 de junho de 2020

O dever de casa é na rua

Guilherme Fiuza

O índice de confiança do consumidor subiu em junho (FGV), assim como o índice de confiança da indústria (CNI) – 29 de 30 setores melhoraram suas expectativas. Apesar de ainda haver quem diga que o pior da epidemia está por vir (a longa espera pelo pico), a sociedade brasileira parece pronta para iniciar uma das recuperações mais difíceis da sua história.

Além do obstáculo sanitário, há o imenso desafio do obstáculo cultural. Junto com a gravidade da pandemia, sobreveio uma deformação, também grave, do senso comum. Ficou difícil buscar a dimensão exata do problema sem ser acusado de tentar minimizá-lo. E a pior consequência disso é a confusão de princípios sobre o que fazer e como agir – isto é, como adaptar a vida em sociedade à convivência com o risco. A própria Organização Mundial da Saúde não conseguiu firmar diretrizes claras sobre isso.

A recomendação do “fique em casa” se mostrou mais um slogan que uma diretriz. A OMS logo admitiu que, para populações socialmente vulneráveis, o confinamento total não seria salvação – seria morte. E recomendou que aqueles dependentes da circulação diária para cavar sua sobrevivência continuassem saindo de casa. Com todas as suas falhas na pandemia do coronavírus, a OMS jamais emitiria uma recomendação como essa se circulação social fosse sinônimo de devastação sanitária.

O mais importante é que nessa mistura geral de incerteza e medo ficou difícil de planejar – e, mais ainda, de propor – um protocolo rigoroso de isolamento de vulneráveis e circulação controlada de não-vulneráveis. Mas é esse o dever de casa (e de rua) que o mundo terá que fazer agora, sejam quais forem os credos. A Justiça brasileira tem cassado medidas municipais de reabertura do comércio e outras atividades sociais. Mesmo se o município apresenta capacidade satisfatória de atendimento hospitalar em relação ao número de infectados, juízes têm embargado a retomada dessas atividades baseados em premissas sem qualquer comprovação científica – como os modelos do estado de São Paulo, que têm como parâmetro de segurança o confinamento total (sem observar os dados de contágio doméstico ou de isolamento dos confinados em relação aos que circulam, vulneráveis ou não).

Não faz o menor sentido proibir uma loja de funcionar, com todos os padrões de distanciamento e higienização atendidos, enquanto diante dela passa um ônibus lotado. A cena de transportes públicos com aglomerações se repetiu fartamente em várias capitais, frequentemente sem interferência de agentes públicos. A impressão é de que se abriu mão da responsabilidade de organizar o distanciamento e demais medidas de bloqueio de contágio para afirmar pura e estupidamente o lockdown. Isso não tem nada a ver com enfrentamento de epidemia e salvação de vidas.

Após meses de pandemia, não há nenhuma demonstração científica, em lugar algum do mundo, de que empurrar populações inteiras para dentro de casa seja mais eficaz do que um isolamento rigoroso dos vulneráveis. [= isolamento vertical; 
Existe uma corrente, bem fundamentada, que interpreta ser a maior parte dos cardíacos mais sujeitos a morte pelo covid-19,  hipertensos que controlam a pressão através do uso de anti-hipertensivos com princípio ativo a base dos IECA = enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2).] As estatísticas de vários países vêm mostrando que, em geral, mais de 90% dos óbitos por covid-19 estão nos grupos de risco – sendo que a imensa maioria tem predisposição cardíaca e está acima dos 70 anos. 

Juízes e governantes não podem mais fechar os olhos para isso – se não quiserem começar a matar sociedades inteiras.

Guilherme Fiuza, jornalista - Vozes - Gazeta do Povo