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sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Um ano envolto em fraldas - Percival Puggina

        As antigas folhinhas de xaropes e pílulas costumavam vir ilustradas com a imagem de um ano ancião que saía, barbas brancas, encurvado sobre sua bengala e um ano novo que chegava enrolado em fraldas. Posta na parede, ali ficava como “marco temporal” de nossos planos de réveillon.

Contudo, o Sol e a Lua não contam seus giros nem dão bola para as promessas que fazemos a nós mesmos. 
O tempo é coisa que usamos, mas não nos pertence; é utilidade, convenção, relatividade. Meia hora na cadeira do dentista dura bem mais do que meia hora numa roda de amigos. 
Na infância, eternidade é o tempo decorrido entre dois Natais ou duas visitas de Papai Noel. 
Minha mãe, por seu turno, tão logo terminava um ano começava a se preocupar com o Natal vindouro “porque, meu filho, logo, logo é Natal outra vez”.

A vida familiar e a vida social se fazem, entre outras coisas, do cotidiano encontro da maturidade com a juventude. Imagine um mundo onde só haja jovens ou onde, pelo reverso, só existam idosos. Imagine, por fim, a permanente perplexidade em que viveríamos se a virada da folhinha nos trouxesse, com efeito, um tempo novo, flamante, que nos enrolasse nas fraldas da incontinência urinária, com tudo para aprender.

Felizmente não é assim, nem deve ser visto assim. O importante, em cada recomeço, é ali estarmos com a experiência que o passado legou. Aprender da História! Aprender da vida! E, principalmente, aprender da eternidade!

Quem aprende da eternidade aprende para a eternidade. Aprende lições que o tempo não desgasta nem consome, lições que não são superadas, lições para a felicidade e para o bem. 
Por isso, para os cristãos, a maior e melhor novidade de cada ano será sempre a Boa Nova, que infatigavelmente põe em marcha a História da Salvação, cumprindo o plano de amor do Pai.

Bem sei o quanto é contraditório à cultura contemporânea o que estou afirmando. E reconheço o quanto as pessoas se deixam cativar pela mensagem do hedonismo “revolucionário”, supostamente coletivista e igualitário. Mas é preciso deixar claro que tal mensagem transforma o mundo num grande seio onde, a cada novo ano, se retoma a fase oral e se trocam as fraldas da imaturidade.

A quantos lerem estas linhas desejo um 2024 de afetos vividos, aconchego familiar, realizações, vitórias, saúde e paz.

Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

É uma menina!Suzane von Richthofen vai ser mamãe: reflexões - Paulo Polzonoff Jr.

Vozes - Gazeta do Povo

"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

Suzane von Richthofen
Para além do sensacionalismo do mundo cão, a maternidade de Suzane von Richthofen (foto) suscita uma série de reflexões sobre a vida da criança.| Foto: Reprodução/ Twitter


Suzane von Richthofen vai ser mamãe. De uma menina. Pelo menos é o que alardeia por aí o biógrafo. (Tão chique ter biógrafo, né? Pena que para isso ela teve que fazer o que fez). O pai seria um médico. Outra informação relevante para este texto: a parricida mais famosa do Brasil estaria pretendendo dar à filha o nome de Isabela – em homenagem à vítima de outro caso que mobilizou o país, o da menina Isabela Nardoni.

E antes que você pergunte se estou sem assunto, me apresso em explicar que uma notícia dessas só vira crônica depois que deixa de ser mera fofoca carcerária (ou distantes latidos do mundo cão) e se transforma em reflexões. Se bem que chamar de “reflexões” esses curtos-circuitos caóticos entre meus neurônios distraídos é exagero mesmo. Mas deixa para lá.

Neste caso, confesso que ao saber que a Baronesa do Campo Belo estava grávida meu primeiro impulso, aquele que se contém à custa de um pouco de educação, foi lamentar viver num país que permite que a autora intelectual de um crime horrível desses possa ter uma vida “normal” depois de passar tão pouco tempo na cadeia. [apenas para registro: no Brasil em matéria de impunidade e valorização do crime e dos criminosos, os exemplos sobram. Quem preside o Brasil, atualmente, é um exemplo perfeito da situação bizarra que vivemos.] Ainda que eu acredite em redenção e coisas do gênero, algo na liberdade de Von Richthofen me incomoda.

Mas aí pensei na criança. No milagre da vida. No futuro. E, em pensando na criança, no milagre da vida e no futuro, esqueci o lamento e imediatamente passei a me preocupar com as pessoas que, tomadas pela revolta, certamente questionarão a dignidade e até o direito à vida dessa menina que, evidentemente, não tem nenhuma culpa pelos crimes e pecados da mãe infamemente famosa. [outro registro: somos radicalmente contra o aborto, a qualquer título ou pretexto, por isso repudiamos qualquer questionamento, feito ou em fase de 'pensando em fazer', sobre os direitos inalienáveis da criança que nasce sobre a sina de ser filha de uma coisa tão infame quanto a que ela provavelmente vai chamar de mãe.] 

Nossa responsabilidade
Não tem. A vida é um milagre admirável, mesmo que saia de um ventre, digamos, problemático.[com a devida vênia, vamos usar o nome certo:s bois: ventre de uma assassina.]   
Por isso, Isabela será mais do que bem-vinda neste nosso Vale de Lágrimas. 
Onde, por circunstâncias alheias à sua pequenina vontade, carregará uma cruz pesadíssima.  
Uma vez aqui, nada, nem mesmo o passado tenebroso da mãe, impedirá a menina de buscar a Salvação.
 
Além disso, é bom deixar bem claro que a maldade, a perversidade, a crueldade ou qualquer outra “dade” que tenha levado Suzane von Richthofen a planejar o assassinato dos pais não é uma característica hereditária. 
Portanto, não haverá nada no DNA da menina a fazer dela uma psicopata. Nada. Num tempo em que se buscam explicações científicas para tudo, essa é uma obviedade que precisa ser dita e repetida. Até que voltemos a ouvir algo remotamente parecido com o bom senso.
 
Enquanto isso não acontece (e não será de uma hora para a outra), é inegável: pesará sobre os ombrinhos da pequena o estigma de ser filha de uma mulher que planejou o assassinato crudelíssimo dos próprios pais. Dos avós dessa criança. Para piorar, em algum momento da vida a menina vai saber que carrega o nome da vítima de um filicídio. 
De outro crime infamemente famoso.
 
Um peso e tanto para uma alminha dessas, hein? Imagine os comentários maliciosos na hora do recreio! O que só aumenta a nossa responsabilidade.  
Porque se é verdade o adágio segundo o qual é preciso toda uma aldeia inteira para se educar uma criança, não dá para esquecer que essa aldeia somos nós. ]
Os parentes próximos de uma forma mais direta, claro, mas eu e você e até aquele gordo lá no fundo de uma forma mais abstrata, enquanto sociedade.
 
Ou seja, Isabela precisará de uma ampla rede de proteção intelectual, emocional e espiritual para suportar o peso de ser filha de quem é
Ainda mais num país que se acostumou a tratar criminosos como celebridades, como pessoas “admiráveis” sob algum prisma macabro
Se essa rede de proteção existirá e será eficiente? 
Ninguém pode responder a isso agora. 
Só me resta, pois, celebrar a vida e rezar para que o mal não triunfe.

Paulo Polzonoff Jr., colunista - Gazeta do Povo - VOZES

 

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

A estrela do xerife - Gazeta do Povo

Guilherme Fiuza 


 

Era uma vez uma democracia graciosa e frágil como uma donzela inocente, bonitinha e ordinária como uma santa de Nelson Rodrigues. Ela vivia vagando por aí cheia de dúvidas e vulnerabilidades, muito instável e inconstante. Até que surgiu o xerife.

O xerife era um personagem decidido, resoluto, que não precisava de nada nem de ninguém para fazer acontecer e mover a roda da história com energia e impetuosidade. Ele então dirigiu-se à democracia, aquela donzela frágil e hesitante, e determinou: fica sentadinha ali no canto, sem dar alteração, que agora é comigo.

Foi maravilhoso. Toda aquela instabilidade decorrente da existência errática da mocinha débil foi corrigida e substituída pelos poderes resolutos do xerife.  
A confusão de opiniões díspares que poluíam o senso comum foi erradicada num instante. 
Instaurando o regime da lisura informacional, com tolerância zero para comentários impuros, insolentes e antidemocráticos, o homem da estrelinha prateada botou ordem na bagunça. 
Quem dissesse coisa errada perdia a língua - e ponto final. [cuidado Fiuza... não começa a dar ideia..]  Como ninguém tinha pensado nisso antes?

Talvez até tivessem pensado, mas ainda não tinha aparecido ninguém com a desenvoltura e a objetividade suficientes para acabar com as gracinhas no recinto. O xerife era o homem certo no lugar certo, porque não tinha problema de inibição. Nem de timidez. Nem de vergonha. Nem de juízo. Nem de semancol. Como diriam William Shakespeare e William Bonner, todo herói é meio sem noção.

Enquanto redigimos este texto, chega um pedido de direito de resposta de Shakespeare, que somos obrigados a acatar e passamos a transcrever: “Me tira dessa, companheiro. Não tenho nada com isso. Me erra. Ass: Will”.

Pronto, está feita a reparação em favor do dramaturgo inglês. Se chegar um pedido do Bonner e a Justiça do Xerife considerar procedente, acataremos da mesma forma, sem discussão. Tudo pela lisura informacional.

A salvação da democracia acabou levando também à salvação da imprensa. 
Os jornalistas andavam meio perdidos, sem saber direito o que panfletar e a quem bajular. 
O xerife preencheu essa lacuna. Era tudo falta de um comando firme. Daí em diante foi um show de liberdade de expressão. 
Confiante de que o xerife era a lei, a imprensa formou um consórcio para ratificar, legitimar e exaltar tudo o que ele fazia. 
Assim surgiu uma prodigiosa onda de manchetes triunfais sobre quebras de sigilo, arrombamentos, pés na porta, mordaças, intimidações, coações, atropelos e perseguições por um mundo melhor.
Políticos, empresários, banqueiros, médicos, advogados, juízes e demais categorias aderiram ao gigantesco bloco de legitimação dos poderes magníficos do xerife
É bem verdade que a sociedade ficou dividida, mas não havia polarização: metade era de cúmplices e a outra metade era de covardes. Como acontece em toda democracia absolutista, a cumplicidade e a covardia se complementam - e confluem para a harmonia do todo. 
Na hora da eleição, por exemplo, não houve espaço para desavenças e ondas de ódio. O xerife esclareceu de saída: vai ser o que eu quiser, como eu quiser.

Alívio geral. Covardes e cúmplices se abraçaram e foram felizes para sempre lambendo as botas do xerife.

Guilherme Fiuza, colunista - Gazeta do Povo - VOZES

domingo, 25 de julho de 2021

Uma grande mentira - Gazeta do Povo

Luís Ernesto Lacombe

O Estado... Você acredita nele? 
Acha mesmo que ele pode ser seu tutor, seu “pai”, o “pai de todos”? Quantas promessas de salvação, de proteção e segurança você tem aceitado? 
Quanto da sua liberdade lhe retiraram, mas para “o seu bem”? 
Esse Estado fomentador de crescimento e desenvolvimento, onde e quando ele deu certo? 
É incapaz de criar riquezas, mal serve para distribuir as riquezas que, apesar de todo seu peso, ainda são criadas. Tem uma obesidade trilionária, que a Lei de Diretrizes Orçamentárias expõe por completo, quase de forma obscena.

O nome todo é Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, mas pode chamar de Fundo Eleitoral. Querem R$ 5,7 bilhões para isso no ano que vem, um aumento de quase três vezes em relação a 2020. [que podem facilmente chegar aos DEZ BILHÕES - confira.] 

[Enquanto o 'fundão' cresce, os inimigos da TRANSPARÊNCIA ELEITORAL são contra o 'voto impresso' alegando que custa caro = menos de 20% do fundão.]  E nem falamos do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, ou simplesmente Fundo Partidário, de R$ 1 bilhão, pago todo ano, não falamos do acesso gratuito ou subsidiado à mídia para partidos políticos... Eles não vivem sem o dinheiro dos outros, sem nosso dinheiro. Por que não fazem rifas, organizam eventos pagos, cobram taxas maiores de seus filiados?

Não tenho notícia de nenhum país que gaste tanto dinheiro público com campanhas eleitorais. 
O Tribunal Superior Eleitoral também leva uma bolada, mesmo num ano em que não há eleições. 
O Judiciário, de um modo geral, custa caro, muito caro. 
Está lá, na LDO, este poder, que insiste em atropelar os outros dois, Executivo e Legislativo, vai nos custar no ano que vem R$ 44,2 bilhões. Sim, os atropelos à Constituição Federal, fatiamento de processo de impeachment, inquéritos esdrúxulos, censura a veículos de comunicação, a contas em redes sociais, prisão de jornalista, prisão de deputado federal, cerceamento ao direito de ir e vir, ao trabalho, tudo isso, de alguma forma, é o nosso dinheiro que financia.
 
E o Congresso Nacional? 
Precisamos mesmo de 513 deputados, 81 senadores? 
Não dá para diminuir esses números? 
E nossos parlamentares precisariam de tantos servidores à sua volta, um total de funcionários maior do que a população da maioria das cidades brasileiras? 
Nosso Legislativo também é gastador... Vai nos levar, em 2022, R$ 12,8 bilhões. E ainda tem as emendas parlamentares, o dinheiro carimbado, gastos obrigatórios, tudo o que dificulta a melhoria da gestão. Fazer mais e melhor, gastando menos, é coisa de empresa privada, de capitalista selvagem... Viva o Estado!

Gostaria muito de evitar ironias e de vender todas as estatais, bancos públicos e Petrobras incluídos. Quem gosta de Estado poderia se contentar com o fim da imunidade tributária dessas empresas. Privatizadas, teriam, todas elas, de passar a pagar impostos... O processo tem sido lento, mas, pelo menos, o ingresso de servidores no governo federal tem caído de forma acentuada. Em 2014, a estocadora de vento contratou 40.717 pessoas. No segundo ano de Bolsonaro na presidência, o número de contratações caiu para 6.713. Para evitar o retrocesso, faça o seguinte: elimine nas urnas os adoradores do Estado. Eles defendem uma grande mentira.

Luís Ernesto  Lacombe, colunista - Gazeta do Povo - VOZES


quarta-feira, 7 de julho de 2021

Minoria abandonada - Revista Oeste

 Augusto Nunes

Não há esperança de salvação para héteros brancos de olhos claros da classe média   

Como todos os jornalistas que viram a cena no cinema americano, também sonhei alguns anos com o dia em que, no comando de uma redação, seria confrontado com uma notícia tão poderosamente inesperada que ocuparia o espaço da manchete sem pedir licença, com o mesmo desembaraço exibido por Lula ao instalar-se por 111 fins de semana no sítio em Atibaia que era dele mas pertencia a um amigo. A carga explosiva da informação permitiria que, de pé na minha sala, eu berrasse a ordem que imobilizaria simultaneamente editorialistas, editores, repórteres, ascensoristas, redatores, fotógrafos, o homem do cafezinho, secretárias, computadores — até o HOMEM, substantivo em maiúsculas reservado exclusivamente ao dono do jornal, aguardaria paralisado na poltrona do seu bunker a explicação para o grito histórico:

PAREM AS MÁQUINAS!!!

Essa chance chegou quando dirigia a redação do Estadão, na virada dos anos 80 para os 90. E então percebi que essa gente do cinema mente muito. Pretexto para o berro consagrador até havia. No começo da madrugada, quando a edição do dia seguinte estava em trabalhos de parto nas rotativas, a vinheta do Plantão Globo preveniu que lá vinha coisa forte. Era mesmo, confirmou a voz solene do locutor: “Iraque ataca Israel com armas químicas”. A penúltima do Oriente Médio (lá não há a última) alcançou o comando da redação aglomerado em minha sala, não para debater os destinos do Brasil ou redesenhar os rumos da Humanidade, mas para comer pão feito em casa com manteiga feita em casa. Se um de nós sussurrasse um “parem as máquinas” naquele anticlímax, seria desterrado no botequim da esquina.

Sem reduzir o ritmo da ofensiva sobre a gastronomia doméstica, demoramos menos de um minuto para concluir que era o caso de avisar a gráfica para suspender momentaneamente a impressão, escalar um grupo de profissionais para conferir a notícia quanto antes e, verdadeira, ceder-lhe a área mais nobre do Estadão. Embora também estivesse mais interessado na receita do pão do que em improváveis acordos de paz na terra conflagrada, um dos editores executivos resumiu o palpite endossado pelos demais quarentões de larga milhagem: “A Folha vai trocar a manchete e continuar rodando. Gente jovem não sabe segurar a ejaculação”. Assim fez nosso impetuoso concorrente — até que o Plantão Globo reaparecesse na telinha e resolvesse a questão. A mesma voz avisou que o Oriente Médio não chegara a tanto, deu o dito por não dito e pediu desculpas aos telespectadores por eventuais desconfortos. Perdi a chance de parar máquinas no grito. Mas não perderia a piada.

Jornalistas contrários à liberdade de imprensa não se rendem facilmente

Na manhã seguinte, escalei um punhado de repórteres para a missão de altíssima relevância: localizar exemplares da Folha impressos entre o Plantão Globo da falsidade e o Plantão Globo do desmentido. Nos 30 minutos que separaram o furo do fiasco, milhares de folhas sem serventia haviam pousado nas bancas ou nos endereços dos assinantes. Como a direção do concorrente fizera o diabo para recolher as provas do crime, a colheita resultou em 20 papelórios com graves defeitos de fabricação. Mas bastaria uma única escassa primeira página que documentasse a perversidade química para ilustrar o texto que condensou o que ocorrera na madrugada. E justificar o título pronto na cabeça desde a véspera: FOLHA ATACA ISRAEL COM ARMAS QUÍMICAS. “Mas não se preocupem”, tranquilizava o fecho do relato. “No domingo, o ombudsman vai explicar tudo.”

Depois desse remoto incidente, a Folha nunca perdeu nenhuma chance de incluir-me na mais desprezível minoria abandonada, composta de héteros brancos de olhos claros e nascidos em famílias de classe média. Quando silenciei a insolência de Glenn Greenwald, as gralhas do jornal — são tantas que povoam até colunas esportivas assinadas por revolucionários de picadeiro — enxergaram uma erupção de homofobia no que não passou de um tabefe pedagógico. (Notaram como o receptador de material roubado se tornou bem menos disponível para entrevistas em estúdios e debates públicos? Pois é.) No mesmo episódio, afirmei que a diferença de gênero não impede que uma jornalista seja tão cafajeste quanto um similar masculino. Amuada, a inspiradora da constatação diagnosticou-me publicamente: sou um caso grave de misoginia. E então fiquei sabendo que odeio mulheres.

Neto de austríaco e italiana, agora cismaram que devo pedir perdão aos brasileiros negros pelo que fizeram a seus avós os portugueses e ingleses traficantes de escravos (além dos africanos que abasteciam navios negreiros com a captura de integrantes de etnias hostis). Meus antepassados não incluem bandeirantes, mas cresce a pressão para que eu peça desculpas aos antigos donos da terra pelo que fizeram os conquistadores do Brasil, em parceria com tribos que tinham tanto apreço pelos vizinhos quanto pelo Bispo Sardinha. Não importa: se venho de europeus, sou fascista (e um genocida em construção). Devolvo tais exigências com a anotação recorrente: erro de destinatário. Mas jornalistas contrários à liberdade de imprensa não se rendem facilmente.

Neste 25 de junho, por exemplo, estava posto em sossego quando recebi pelo WhatsApp a mensagem cujos trechos essenciais reproduzo sem correções:

“Estou entrando em contato com o senhor para perguntar se gostaria de se posicionar acerca de reportagem que estou apurando sobre racismo. Abaixo, encontrará as perguntas []

1. Na última quarta (23), o senhor disse ao vivo na Rádio Jovem Pan que “Todos os casos, inclusive essa evidente fraude ensaiada pelo deputado, seu irmão, Renan Calheiros e etc. As imagens que nós mostramos, elas falam. Nessas imagens, o rosto fala, os olhos, o tom de voz, o timbre, tudo. Até a tonalidade da pele fala e tal. É evidente que o Onyx, um político muito tarimbado, está dizendo a verdade”. O trecho em negrito foi considerado por ativistas negros como sendo expressão de racismo de sua parte. Gostaria de comentar o caso?”.

 Mandei a resposta em cinco minutos:

“Afirmei já no começo do comentário que, na TV, o rosto fala. Fala com o olhar inseguro, por exemplo. Ou com a boca ressecada. Ou com a tonalidade da pele. Quem mente corre o risco de ficar com o rosto ruborizado, com a pele avermelhada. Quando me exponho ao sol por muito tempo, meu rosto adquire uma tonalidade bronzeada. Quem vê racismo nessa constatação (sem ficar ruborizado) precisa de psiquiatra”.

Na sexta-feira, contei a história na Jovem Pan e li a resposta à reportagem prometida para a edição de domingo. Até agora, continua engavetada. Os editores do jornal devem estar empenhados em provar que sou pelo menos preconceituoso. Vou ajudá-los: sou preconceituoso com jornalistas que não sabem escrever. E despertam meus mais baixos instintos os que passam a vida infiltrados em cargos de chefia.

Leia também “Os vigaristas da adversativa”

Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste
 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

"Assistimos agora a escaramuças, de novo, em torno de uma vacina" - Alexandre Garcia

"A Anvisa tem por obrigação a defesa da saúde da população, assumindo a responsabilidade pela segurança de vacinas. Se liberar uma vacina que cause danos à saúde das pessoas, será responsabilizada"

Passados 116 anos da Revolta da Vacina, que teve 30 mortes, 110 feridos e 12.400 prisões no Rio de Janeiro e fez o governo recuar da obrigatoriedade da imunização contra a varíola, assistimos, agora, a escaramuças, de novo, em torno de uma vacina. De um lado, o governo federal e, de outro, o governo de São Paulo. O secretário-executivo do Ministério da Saúde, como porta-voz do Executivo, disse que, quando houver vacina licenciada, a estrutura habitual do governo, que aplica 300 milhões de doses anuais de 19 vacinas, será acionada via SUS, em seus 38 mil postos. E acusou Doria de vender sonhos e se aproveitar da esperança do povo. Em meio à pandemia, a população divide-se entre os que esperam salvação na vacina e os que preferem esperar, diante de vacinas tão pouco testadas em tão pouco tempo. E ainda temos as de engenharia genética, que nunca tomamos. A produtora alega, no contrato, que não se responsabiliza por efeitos colaterais.

[Importante lembrar: além de responsabilizarem (responsabilização merecida,  caso a liberação indevida  pela Agência, ocorra  por incompetência, medo de algum partideco ou por qualquer tipo de pressão política, venha de onde vier) a Anvisa, vão tentar encontrar um meio de atribuir responsabilidade ao presidente Jair Bolsonaro. 

A Anvisa deve denunciar qualquer pressão que sofra para liberar vacina da preferência de algum governante;  não pode,  não deve liberar nenhuma vacina que não atenda aos requisitos estabelecidos  por órgãos competentes, isentos, responsáveis, sérios, possuidores de credibilidade mundial.  Vacina que tenha aprovação apenas no país de origem, sem ter sido validada em nenhum outro país, que só é defendida pelo país fabricante, tem que ser recusada.

A aprovação da segurança e eficácia da vacina, ou vacinas, tem que ser baseada na ciência. Tudo tem  que ser provado e comprovado - na dúvida, deve ser rejeitado.]

Sempre citada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que é autônoma, não está submetida a governos e muito menos à política, como salientou seu diretor-geral. Os funcionários da Anvisa fizeram uma nota reiterando isso. A agência tem por obrigação a defesa da saúde da população, assumindo a responsabilidade pela segurança de vacinas. Se liberar uma vacina que cause danos à saúde das pessoas, será responsabilizada. Se permitir que o governador Doria aplique a vacina chinesa sem que ela esteja licenciada na China e aqui, também será responsabilizada.  
E se as pessoas a serem vacinadas assinarem um termo de responsabilidade, como fazem antes de cirurgias?
 

A lei da pandemia prevê autorização emergencial, que não é a vacinação em massa. Assim, não se pode atropelar, por ânsia política, o rito científico que visa à segurança da vacina. O próprio governador de São Paulo, que havia prometido entregar dados da fase III da vacina chinesa, adiou o prazo, embora já tenha anunciado início da vacinação para 25 de janeiro, o que é uma precipitação ou desejo de apressar a Anvisa. Enquanto isso, há resultados marcantes nos tratamentos preventivo e precoce. 

Nenhum laboratório, até agora, entrou na agência pedindo registro para uso emergencial e experimental. No entanto, o relator de ações no Supremo, ministro Lewandowski, deu 48 horas para o governo marcar data de início e fim da vacinação. Parece que vivemos no país do faz de conta.  
Faz de conta que temos a vacina, faz de conta que ela é segura, faz de conta que está aprovada, faz de conta que até sabemos quando a vacinação vai começar e terminar.  
Brinca-se com a saúde e a esperança do povo, como se fôssemos cordeirinhos descerebrados.

Alexandre Garcia, jornalista - Coluna no Correio Braziliense


segunda-feira, 29 de junho de 2020

O dever de casa é na rua

Guilherme Fiuza

O índice de confiança do consumidor subiu em junho (FGV), assim como o índice de confiança da indústria (CNI) – 29 de 30 setores melhoraram suas expectativas. Apesar de ainda haver quem diga que o pior da epidemia está por vir (a longa espera pelo pico), a sociedade brasileira parece pronta para iniciar uma das recuperações mais difíceis da sua história.

Além do obstáculo sanitário, há o imenso desafio do obstáculo cultural. Junto com a gravidade da pandemia, sobreveio uma deformação, também grave, do senso comum. Ficou difícil buscar a dimensão exata do problema sem ser acusado de tentar minimizá-lo. E a pior consequência disso é a confusão de princípios sobre o que fazer e como agir – isto é, como adaptar a vida em sociedade à convivência com o risco. A própria Organização Mundial da Saúde não conseguiu firmar diretrizes claras sobre isso.

A recomendação do “fique em casa” se mostrou mais um slogan que uma diretriz. A OMS logo admitiu que, para populações socialmente vulneráveis, o confinamento total não seria salvação – seria morte. E recomendou que aqueles dependentes da circulação diária para cavar sua sobrevivência continuassem saindo de casa. Com todas as suas falhas na pandemia do coronavírus, a OMS jamais emitiria uma recomendação como essa se circulação social fosse sinônimo de devastação sanitária.

O mais importante é que nessa mistura geral de incerteza e medo ficou difícil de planejar – e, mais ainda, de propor – um protocolo rigoroso de isolamento de vulneráveis e circulação controlada de não-vulneráveis. Mas é esse o dever de casa (e de rua) que o mundo terá que fazer agora, sejam quais forem os credos. A Justiça brasileira tem cassado medidas municipais de reabertura do comércio e outras atividades sociais. Mesmo se o município apresenta capacidade satisfatória de atendimento hospitalar em relação ao número de infectados, juízes têm embargado a retomada dessas atividades baseados em premissas sem qualquer comprovação científica – como os modelos do estado de São Paulo, que têm como parâmetro de segurança o confinamento total (sem observar os dados de contágio doméstico ou de isolamento dos confinados em relação aos que circulam, vulneráveis ou não).

Não faz o menor sentido proibir uma loja de funcionar, com todos os padrões de distanciamento e higienização atendidos, enquanto diante dela passa um ônibus lotado. A cena de transportes públicos com aglomerações se repetiu fartamente em várias capitais, frequentemente sem interferência de agentes públicos. A impressão é de que se abriu mão da responsabilidade de organizar o distanciamento e demais medidas de bloqueio de contágio para afirmar pura e estupidamente o lockdown. Isso não tem nada a ver com enfrentamento de epidemia e salvação de vidas.

Após meses de pandemia, não há nenhuma demonstração científica, em lugar algum do mundo, de que empurrar populações inteiras para dentro de casa seja mais eficaz do que um isolamento rigoroso dos vulneráveis. [= isolamento vertical; 
Existe uma corrente, bem fundamentada, que interpreta ser a maior parte dos cardíacos mais sujeitos a morte pelo covid-19,  hipertensos que controlam a pressão através do uso de anti-hipertensivos com princípio ativo a base dos IECA = enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2).] As estatísticas de vários países vêm mostrando que, em geral, mais de 90% dos óbitos por covid-19 estão nos grupos de risco – sendo que a imensa maioria tem predisposição cardíaca e está acima dos 70 anos. 

Juízes e governantes não podem mais fechar os olhos para isso – se não quiserem começar a matar sociedades inteiras.

Guilherme Fiuza, jornalista - Vozes - Gazeta do Povo




segunda-feira, 20 de abril de 2020

Teich fará o que Bolsonaro quer - José Nêumanne

No dia em que o presidente Jair Bolsonaro anunciou estar nomeando o oncologista carioca Nelson Teich ministro da Saúde no lugar do ortopedista pediátrico matogrossense do sul Luiz Henrique Mandetta, foi reproduzida nas redes sociais uma frase dita pelo nomeado a respeito da opção a ser posta para intensivistas para ocupar um leito de UTI com respirador por um jovem com chance de viver muitos anos ou um velho desenganado. Em teoria, não é ético retirar qualquer frase de seu contexto. Mas basta ouvir o que ele disse para perceber o uso do verbo investir, que é mais próprio de atividades econômicas do que em salvação de vidas por médicos. [em um passado não muito distante era comum que qualquer recurso aplicado em estudo, viagens, etc, fosse considerado gasto - deixando a ideia de que se tratava de um gasto. Buscando transmitir a ideia de que esse tipo de 'gasto' é sempre benéfico para quem o faz, e para quem o recebe, passou a ser usada a palavra 'investimento'. Certamente, o novo ministro usou investir no sentido de ser as despesas com saúde um investimento.

Quanto ao ministro Teich se encontrar alinhado ao presidente Bolsonaro, não é surpresa. Qualquer cidadão ao ser convidado para exercer um cargo de confiança, especialmente de ministro de Estado, não concordando com a política traçada para a área por quem o convidou tem que ter a hombridade de recusar o convite.

Caso o aceite, logo que lhe for apresentado  métodos, metas, com os quais não concorde, tem que ter a dignidade de entregar o cargo imediatamente.]


A adaptação de “isolamento vertical”, expressão da preferência de seu chefe, para “inteligente” ou “estratégico” mostra claramente que a eugenia proposta pelo presidente (jovem sai de casa, pega a doença e, ao voltar para casa, a transmite ao parente idoso) foi revestida de eufemismos espertos para não chocar classe médica. Direto ao assunto. Inté. E só a verdade nos salvará. 


Estação Nêumanne - José Nêumanne, jornalista


quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A verdade oculta de Lula - 2018 recomendamos: Lula para presidente e Dilma para vice

Lula e Dilma na presidência e vice em 2018, a salvação para o Brasil

A verdade oculta de Lula

Lula convocou quinze advogados para retirar este vídeo da rede.

 

segunda-feira, 2 de maio de 2016

O triunfo da lei



O que testemunhamos está longe de se parecer remotamente com um país às vésperas de uma ruptura política e social. Não houve golpe. Não há golpe em marcha. 

Não haverá golpe
Qualitativamente, este impeachment é superior ao que derrubou o presidente Fernando Collor. E por diversas razões. A mais relevante: nunca antes neste país discutiu-se tanto, e por tantos meios, e com tamanha liberdade e energia, a deposição de um presidente eleito pelo voto popular.

E até aqui, um só cadáver não se produziu por causa disso. Sequer um ferido em estado grave. Não é pouca coisa. Collor caiu porque restou provado que se beneficiou de roubo cometido por terceiros – no caso, o tesoureiro de sua campanha presidencial. O impeachment limitou-se ao aspecto moral.

Mesmo assim, se comparado com os protagonistas do mar de lama descoberto pela Lava-Jato, Collor não passou de um trombadinha, desses que atacam mulheres indefesas no meio das ruas.  Procuram-se indícios e provas definitivas de que Dilma roubou ou deixou que roubassem. Ainda não foram encontrados. Mas isso não significa que inexistam.

Dilma sucedeu na chefia da Casa Civil o ex-ministro José Dirceu, apontado, de início, pelo Supremo Tribunal Federal, como chefe da “sofisticada organização criminosa” que tentou se apoderar de parte do aparelho do Estado. Em seguida, o Supremo derrubou a acusação e Dirceu acabou condenado apenas por corrupção ativa. O país da jabuticaba passou a ser também o país da “sofisticada organização criminosa” sem cabeça.

O escândalo do mensalão não deu lugar ao escândalo do petrolão. Tratou-se de uma coisa só – a cobrança de propinas para financiar campanhas de partidos e enriquecer seus líderes.  Dilma foi chefe da Casa Civil de meados de 2005 a meados de 2010, quando deixou o cargo para disputar a sucessão de Lula. No mesmo período, chefiou o Conselho de Administração da Petrobras.

E apesar disso, teima em dizer que jamais ouviu falar em mensalão, tampouco petrolão. O mensalão foi denunciado um pouco antes de ela chegar à Casa Civil. O petrolão, enquanto já era presidente. O pedido de impeachment de Dilma não fala em crime de corrupção. Fala apenas em “pedaladas fiscais” – gastos além da conta, sem autorização do Congresso e mediante empréstimos descaracterizados tomados em bancos oficiais.

Mas o reconhecimento de que a corrupção foi uma das marcas do período de Dilma orientou o voto dos deputados e orientará o dos senadores.

Bem como a opção pela mentira pura, descarada, como recurso para se reeleger. Fora a desastrosa gestão econômica responsável, entre outras coisas, por 11 milhões de brasileiros desempregados, e uma recessão por dois anos consecutivos. Tudo isso vem sendo discutido desde a aceitação, no ano passado, do pedido de impeachment. E assim será até o seu desfecho nos próximos meses.

O que testemunhamos está longe de se parecer remotamente com um país às vésperas de uma ruptura política e social. Não houve golpe. Não há golpe em marcha. Não haverá golpe. Como não houve golpe quando o PT pediu o impeachment de Sarney, do ministro da Fazenda Dilson Funaro, de Collor, de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso (esse, duas vezes).

Uma democracia capaz de resistir a tantos abalos, frustrações e a dois processos de impeachment em 26 anos, não é uma democracia doente, muito menos em estado terminal. Pelo contrário. É robusta. Imperfeita, é claro, como toda democracia jovem e em construção. Mas que saberá conviver com o inconformismo dos derrotados.

Não há salvação fora da lei.

Fonte: Blog do Ricardo Noblat