A Jair nunca desejei a 'ponta da praia'. Apenas a lei e direitos constitucionais (ou direitos humanos, se preferir)
Num
governo de depuradores, os depurados que se cuidem. “Vai haver uma
limpeza como nunca houve antes nesse país”, na síntese do líder em reta
final de campanha. "Petista bom é petista morto", nas placas de
militantes. O plano de "moralização institucional" inclui desde a prisão
de ministros do STF, como aventou um general, até a criação de um
"Index Librorum Prohibitorum" para escolas públicas, uma lista de livros
banidos das salas de aula por terem versões da história brasileira com
as quais generais não concordam.
Janaína Paschoal foi a ideóloga mais recente na história das teorias da depuração, bem conhecidas no século XX. Elaborou sua versão por meio de tuítes e falas públicas: "Eu realmente acredito que estamos em um processo de depuração." Esse processo, na sua visão, vai além do Brasil: "Meu apoio ao povo russo, que luta por depuração na política." Curioso. Na forma, pelo menos recomendou um caminho legalista: "O processo de depuração vai continuar, mas deve ser conforme a Constituição!" E esse objetivo percorre três poderes: "Não dá para depurar executivo e legislativo sem passar pelo judiciário."
A depuração tem três degraus, cada um com seu herói: começou pelo Impeachment (de Eduardo Cunha), continuou pela Lava Jato (de Sérgio Moro) e se fecha com Bolsonaro: "neste momento histórico, a eleição de Bolsonaro é essencial para que tenha sequência o processo de depuração." Paschoal prometeu dias atrás que abandonará Bolsonaro "se ele for autoritário". Pergunta-se por aí o que mais Bolsonaro precisa fazer para passar nesse curioso teste de autoritarismo que Paschoal anunciou. Qual sua linha vermelha, qual sua gota d'água? Janaína não poderá se desvencilhar do script que escreveu de modo tão leviano.
O que Bolsonaro ensina, ensina pelo contra-exemplo. Da observação de sua incivilidade, não deixamos de aprender civilidade política. O bolsonarismo, pelo que se fez conhecer até aqui, adota divisão funcional do trabalho: a violência simbólica, verbal e coreográfica pertence ao capitão e seu círculo íntimo (filhos, indústria de notícias falsas etc.); a violência física e as mãos sujas de sangue ficam por conta de seus soldados nas ruas; já a violência do colarinho branco, por cumplicidade silenciosa, fica com parte da mídia que o normalizou como "polêmico", com o legislativo que o tolerou por leniência partidária e com o judiciário que o legitimou à luz da liberdade de expressão. Sem falar dos setores que deram as mãos a Paulo Guedes (aqueles que apostam no PIB sem se importar com o PIBB - o produto interno da brutalidade brasileira). Essa tripartição de papéis o elegeu e continuará a operar para que um governo anti-instituições não seja domesticado pelas instituições que buscarão se reacomodar. Será um governo em campanha permanente, em comício ininterrupto.
O que Paschoal chama de depuração, a ciência política dá o nome de desinstitucionalização. Em outras palavras: uma ação voltada a erodir qualquer padrão decisório orientado por regras compartilhadas entre atores vitoriosos e perdedores. A desinstitucionalização vende gato por lebre e confunde ardilosamente o combate à corrupção com corrupção da democracia e implosão de procedimentos. Fora das instituições, o mundo fica muito pior (ou, para quem gosta de fortes emoções, pouca liberdade e de total incerteza sobre o amanhã, pode ficar mais fascinante também).
Como conter o processo em curso? Democratas devem respeitar, por princípio, o resultado das eleições e se prepararem para a próxima. Contudo, devem deixar claro que as condições para esse respeito estão no pacto constitucional, fora do qual um governo eleito perde legitimidade e convida a desobediência. A autoridade dos vitoriosos depende do reconhecimento dos derrotados como portadores de direitos, entre os quais o da oposição.
Nem por isso se pode deixar de apurar as táticas e condições da disputa eleitoral, não para lançar paranóicas suspeitas sobre urnas eletrônicas, mas para verificar se práticas de legalidade duvidosa na campanha ensejam sanção jurídica. Se o TSE quiser resgatar sua credibilidade, uma "auditoria eleitoral" convincente é o primeiro passo. Na abertura do ano judicial argentino de 2013, Lorenzetti encerrou com um conhecido lema do progresso democrático: “nunca mais nas violações de direitos humanos, nunca menos na promoção de direitos sociais”. Não é o compromisso que podemos esperar de um presidente cuja carreira parlamentar de 3 décadas foi talhada pelo elogio à ditadura militar e à tortura, pela retórica da violência e pela escasso trabalho para o bem comum. Mas é o mínimo que poderemos exigir: nunca mais na supressão de nossas liberdades públicas, nunca menos na promoção de nossos direitos à educação, saúde, trabalho digno etc. Se quiser respeitar a Constituição, tal como prometeu no seu discurso de vitória eleitoral, esse é o norte.
A Jair nunca desejei a 'ponta da praia'. Apenas a lei e direitos constitucionais (ou direitos humanos, se preferir).
Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e Professor da USP
Janaína Paschoal foi a ideóloga mais recente na história das teorias da depuração, bem conhecidas no século XX. Elaborou sua versão por meio de tuítes e falas públicas: "Eu realmente acredito que estamos em um processo de depuração." Esse processo, na sua visão, vai além do Brasil: "Meu apoio ao povo russo, que luta por depuração na política." Curioso. Na forma, pelo menos recomendou um caminho legalista: "O processo de depuração vai continuar, mas deve ser conforme a Constituição!" E esse objetivo percorre três poderes: "Não dá para depurar executivo e legislativo sem passar pelo judiciário."
A depuração tem três degraus, cada um com seu herói: começou pelo Impeachment (de Eduardo Cunha), continuou pela Lava Jato (de Sérgio Moro) e se fecha com Bolsonaro: "neste momento histórico, a eleição de Bolsonaro é essencial para que tenha sequência o processo de depuração." Paschoal prometeu dias atrás que abandonará Bolsonaro "se ele for autoritário". Pergunta-se por aí o que mais Bolsonaro precisa fazer para passar nesse curioso teste de autoritarismo que Paschoal anunciou. Qual sua linha vermelha, qual sua gota d'água? Janaína não poderá se desvencilhar do script que escreveu de modo tão leviano.
O que Bolsonaro ensina, ensina pelo contra-exemplo. Da observação de sua incivilidade, não deixamos de aprender civilidade política. O bolsonarismo, pelo que se fez conhecer até aqui, adota divisão funcional do trabalho: a violência simbólica, verbal e coreográfica pertence ao capitão e seu círculo íntimo (filhos, indústria de notícias falsas etc.); a violência física e as mãos sujas de sangue ficam por conta de seus soldados nas ruas; já a violência do colarinho branco, por cumplicidade silenciosa, fica com parte da mídia que o normalizou como "polêmico", com o legislativo que o tolerou por leniência partidária e com o judiciário que o legitimou à luz da liberdade de expressão. Sem falar dos setores que deram as mãos a Paulo Guedes (aqueles que apostam no PIB sem se importar com o PIBB - o produto interno da brutalidade brasileira). Essa tripartição de papéis o elegeu e continuará a operar para que um governo anti-instituições não seja domesticado pelas instituições que buscarão se reacomodar. Será um governo em campanha permanente, em comício ininterrupto.
O que Paschoal chama de depuração, a ciência política dá o nome de desinstitucionalização. Em outras palavras: uma ação voltada a erodir qualquer padrão decisório orientado por regras compartilhadas entre atores vitoriosos e perdedores. A desinstitucionalização vende gato por lebre e confunde ardilosamente o combate à corrupção com corrupção da democracia e implosão de procedimentos. Fora das instituições, o mundo fica muito pior (ou, para quem gosta de fortes emoções, pouca liberdade e de total incerteza sobre o amanhã, pode ficar mais fascinante também).
Como conter o processo em curso? Democratas devem respeitar, por princípio, o resultado das eleições e se prepararem para a próxima. Contudo, devem deixar claro que as condições para esse respeito estão no pacto constitucional, fora do qual um governo eleito perde legitimidade e convida a desobediência. A autoridade dos vitoriosos depende do reconhecimento dos derrotados como portadores de direitos, entre os quais o da oposição.
Nem por isso se pode deixar de apurar as táticas e condições da disputa eleitoral, não para lançar paranóicas suspeitas sobre urnas eletrônicas, mas para verificar se práticas de legalidade duvidosa na campanha ensejam sanção jurídica. Se o TSE quiser resgatar sua credibilidade, uma "auditoria eleitoral" convincente é o primeiro passo. Na abertura do ano judicial argentino de 2013, Lorenzetti encerrou com um conhecido lema do progresso democrático: “nunca mais nas violações de direitos humanos, nunca menos na promoção de direitos sociais”. Não é o compromisso que podemos esperar de um presidente cuja carreira parlamentar de 3 décadas foi talhada pelo elogio à ditadura militar e à tortura, pela retórica da violência e pela escasso trabalho para o bem comum. Mas é o mínimo que poderemos exigir: nunca mais na supressão de nossas liberdades públicas, nunca menos na promoção de nossos direitos à educação, saúde, trabalho digno etc. Se quiser respeitar a Constituição, tal como prometeu no seu discurso de vitória eleitoral, esse é o norte.
A Jair nunca desejei a 'ponta da praia'. Apenas a lei e direitos constitucionais (ou direitos humanos, se preferir).
Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e Professor da USP