Vitorioso no julgamento de Daniel Silveira, o Supremo foi nocauteado pelo indulto presidencial
Primeiro, o grupo que controla o STF decidiu que Paulo Faria, advogado do réu, teria de passar pelo teste de covid-19 para entrar no templo que o doutor Kakay frequenta trajando bermudas. Em seguida, o réu e o também deputado Eduardo Bolsonaro foram proibidos de acompanhar o julgamento porque, até que termine a pandemia que acabou, as portas só não estarão fechadas para bacharéis em Direito. Ao abrir a sessão, o presidente Luiz Fux (indicado por Lula) recomendou à OAB que investigue a “recalcitrância” do defensor de Daniel Silveira. Até o começo da noite, textos constitucionais foram tratados a socos e pontapés. No derradeiro ato da ópera dos superjuízes de araque, o parlamentar foi castigado com a cassação do mandato, a suspensão dos direitos políticos, uma multa de bom tamanho e uma temporada na prisão de quase nove anos.
O Supremo pode muito, mas não pode tudo, descobriram no dia seguinte os ministros que, horas antes, haviam submetido a Constituição a uma selvagem sessão de tortura. O Pretório Excelso não pode, por exemplo, agir como se fosse maior e melhor que os demais Poderes. O sinal amarelo foi aceso pelo presidente da Câmara dos Deputados: Artur Lira avisou que as punições impostas a Daniel Silveira teriam de ser avalizadas pelo Legislativo. O sinal vermelho foi acionado no começo da noite de 21 de abril pela surpreendente entrada em cena do presidente Jair Bolsonaro, que resgatou Daniel Silveira do buraco negro com a concessão do indulto individual.
Outro vídeo, que registra um dos inúmeros bate-bocas entre Luís Roberto Barroso (indicado por Dilma Rousseff) e Gilmar Mendes (indicado por Fernando Henrique Cardoso), as sobrancelhas impecáveis revidam a acusação do beiço beligerante (“Vossa Excelência, quando chegou aqui, soltou José Dirceu!”) com um esclarecimento que fortalece a argumentação de Bolsonaro: “José Dirceu foi solto por um indulto da presidente da República”. Por que Bolsonaro não poderia fazer em favor de um inocente o que Dilma fez para libertar um bandido? Tudo somado, Alexandre de Moraes terá de engolir sem engasgos o decreto presidencial. Isso se lhe sobrar algum juízo.
O grande momento do relator do julgamento durou apenas um dia — mas foi um dia e tanto. Já no início da leitura do seu voto, Moraes resolveu reescrever o artigo 53 da Constituição. O texto em vigor desde 1988 comunica que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer opiniões, palavras e votos”. Depende, imagina o campeão da truculência, que acrescentou a ressalva indigente na forma e intragável no conteúdo: “A liberdade de expressão existe para opiniões contraditórias, jocosas, sátiras, opiniões, inclusive errôneas, mas não para opiniões criminosas, imputações criminosas, discurso de ódio, atentado contra o Estado de Direito e democracia”. A colisão com o texto constitucional reduz o argumento a farrapos. O “quaisquer” que precede “opiniões” significa “todas”. Sobretudo, adverte que, nos regimes democráticos, crimes cometidos com palavras não dão cadeia. Desde que não ofendam integrantes do Supremo, teima o relator. Quem faz isso merece cadeia.
O caçula do STF preferiu gaguejar um voto levemente envergonhado e terrivelmente vergonhoso
A conversão de Mendonça entusiasmou os gerentes da Corte. Dias Toffoli (indicado por Lula), por exemplo, desandou no falatório transcrito a seguir sem correções nem retoques: “Entre as grandes virtudes de um homem ou mulher está a coragem. E aqui registro nesse sentido a coragem do ministro André Mendonça. Todos nós sabemos que Sua Excelência sofreu pressão, mas pressão todos nós sofremos. A cadeira e a toga nos dá autonomia para não nos sujeitarmos a ela”. O espancamento do idioma recomenda que o ex-assessor de José Dirceu, duas vezes reprovado no concurso para ingresso na magistratura paulista, seja condenado a frequentar por oito anos e nove meses um curso intensivo de português. Mas o elogio faz sentido: certos atos de covardia exigem mais coragem que demonstrações de bravura em combate protagonizadas por heróis de guerra.
O decano Gilmar Mendes ficou feliz com Mendonça, mas condecorou o relator: “Gostaria de destacar o papel que o ministro Alexandre tem desempenhado nesse contexto tão difícil a partir da relatoria daquilo que chamamos de inquérito das fake news ou atos antidemocráticos”, enrolou-se no improviso. “Isso nada tem a ver com liberdade de expressão e nem está coberta pela imunidade parlamentar, que conhece claros limites”. Ansiosa por agradar ao atual mentor, Cármen Lúcia (indicada por Lula) caprichou no falatório indecifrável: “O relator Alexandre atuou com coragem. A demonstração de coragem que se tem demonstrado, não deixando de afrouxar quando tem de afrouxar, e apertar naquilo que precisa ser cumprido”. Num exame do Enem, não escaparia do zero com louvor. Completaram o elenco os figurantes Ricardo Lewandowski (indicado por Lula), Rosa Weber e Edson Fachin (ambos indicados por Dilma)
No dia 20, nunca pareceram tão confiantes os ministros que sonham com a impugnação da candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro. No dia 21, nunca pareceu tão sideral a distância que separa o Brasil real do bando de advogados que viraram juízes graças ao voto de um presidente da República. O Supremo começou a semana se achando maior que o Planalto. Terminou-a com os hematomas de quem perdeu o duelo na Praça dos Três Poderes. Alguns doutores em tudo certamente pensam em revanche. Fariam um favor ao Brasil, e a si próprios, se tratassem de respeitar a Constituição.
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Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste