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segunda-feira, 18 de março de 2019

Tuitar e governar

O presidente não pode se arriscar, há toda uma liturgia do cargo que deve ser observada

O risco de identificar tuitar com governar tem uma alta carga explosiva. Ações e ataques se multiplicam numa guerra cujo armamento principal reside nas redes sociais. O pensamento tende a desaparecer em proveito de ações imediatas que se utilizam de meios de expressão limitados, até pelo número de caracteres. Em tal contexto, a concisão toma a forma de acusações, em que vale somente o valor retórico ou demagógico do que é transmitido, sem a necessária atenção à verdade do que foi comunicado.

Tuitar, como o exibiu a campanha do atual presidente, tornou-se um elemento imprescindível em eleições, em que prevalecem acusações e denúncias, sem que se estabeleça nenhum diálogo e, por consequência, nenhum debate ou troca de pensamento. Ganha quem souber transmitir uma mensagem, independentemente de sua coerência, falsidade ou consistência. É bem verdade que o contexto da vitória era propício a tal tipo de campanha, pois a sociedade brasileira estava farta da corrupção e dos governos petistas, clamando por mudanças. Logo, chamando alguém capaz de personificá-las. A hábil estratégia de comunicação da equipe do candidato Bolsonaro foi exímia ao alcançar tal objetivo.

Acontece, porém, que as demandas de governar são de outro tipo, exigindo um pensamento de outra espécie, mais elaborado, caracterizado pela consideração do outro como adversário, e não como inimigo, e por propostas de quais serão os programas de governo para uma transformação do Estado. Aqui intervém o tempo de elaboração de ideias, suas formas de implementação e seus instrumentos mais adequados. O twitter eleitoral, tornado twitter presidencial, pode ser de valia, sempre e quando acompanhado por uma comunicação digital institucional e uma atenção particular para a mídia tradicional, em particular a impressa.

O recente episódio envolvendo uma jornalista do Estadão e a imediata reação presidencial é uma amostra do que não deve ser feito, um exemplo da identificação indevida entre tuitar e governar. A jornalista Constança Rezende terminou sendo envolvida numa rede de fake news, voltada para desacreditá-la e “denunciar” o próprio jornal, tornado, então, “inimigo”. A jogada do suposto blogueiro é nada mais do que pueril, própria de pessoa de má-fé, ideologicamente guiada. Chegou a ser desautorizado pelo próprio site.

Note-se, a propósito, que o Estadão é um jornal de longa tradição liberal, não se encaixa minimamente no perfil de esquerdista ou petista, sua característica principal é a adesão à liberdade como princípio. Soube se opor a regimes autoritários no transcurso de sua história, tampouco se curvou à hegemonia petista. Não poderia haver alvo mais inadequado. Ganhou, no entanto, dimensão global (sendo originário da França) ao ser tomado por verdadeiro pelo presidente da República, que se apressou a considerar tal falsidade como se fizesse parte de uma conspiração contra o atual governo. A cautela deveria ter sido de rigor, exigindo, portanto, uma averiguação preliminar de se tal “notícia” era ou não verdadeira. Houve um problema de assessoria, o presidente não se pode arriscar indevidamente. Há toda uma liturgia do cargo que deve ser observada.

Quando se parte de uma suposta doutrina da conspiração, seu perigo maior consiste em que qualquer opinião divergente é tomada como se fosse inimiga. A divergência e a crítica fazem parte de qualquer sociedade democrática e como tal devem ser consideradas. A mídia tradicional não é inimiga, mas uma espécie de poder social independente, seu comprometimento maior é com a notícia verdadeira, editoriais responsáveis e artigos analíticos. Ora, para preencher essa sua função é primordial que tenha independência e rigor em suas fontes investigativas.

A mídia impressa, da qual este jornal é um exemplo, não perde sua importância num mundo de comunicação digital. É ela que se torna um bastião para a averiguação das fake news e do que se propaga, sem nenhuma regra ou controle, no mundo virtual. É ela também que subsidia as redes sociais, que tomam dela boa parte de suas “matérias” e “notícias”. Atrever-me-ia a dizer que a mídia impressa é cada vez mais importante numa sociedade digital, servindo-lhe como referência e âncora da verdade e da análise, lugar do pensamento. O problema está em que a publicidade não leva em conta esse fator central, fazendo a mídia impressa viver uma crise financeira atrás da outra. O paradoxo consiste em que a mídia impressa é cada vez mais necessária num mundo virtual e suas condições de existência são progressivamente mais precárias.

Do ponto de vista governamental, pode haver total sintonia entre uma comunicação digital presidencial, uma comunicação digital institucional e uma comunicação de mídia tradicional. O que não convém é identificá-las e confundi-las. O próprio presidente da República, por intermédio de seu porta-voz, general Rêgo Barros, e de seu secretário de Comunicação Social, Floriano Amorim, sinalizou uma correção de rota ao convidar jornalistas para dois cafés da manhã. O que conta, aqui, é o fato de o presidente ter aberto essa forma de comunicação ao reconhecer a mídia impressa e a televisiva como interlocutoras. Faltava, evidentemente, esse tipo de interlocução, agora é ampliá-la.

O Brasil vive uma oportunidade única de mudança. O presidente Bolsonaro foi eleito por personificar a luta contra a corrupção, por suas firmes posições antipetistas e por sua contestação frontal do politicamente correto. Tem a sorte de o PT estar completamente desorientado, agindo como biruta de aeroporto. A rigor, não tem oposição, salvo a que parece estar fazendo a si mesmo, com uso abusivo de tuítes e divergências internas, de cunho ideológico, completamente desnecessárias.

Urge a mudança e para tal o bom senso deveria prevalecer.

Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia na UFRGS - O Estado de S. Paulo