O presidente não pode se arriscar, há toda uma liturgia do cargo que deve ser observada
O risco de identificar tuitar com governar tem uma alta carga explosiva.
Ações e ataques se multiplicam numa guerra cujo armamento principal
reside nas redes sociais. O pensamento tende a desaparecer em proveito
de ações imediatas que se utilizam de meios de expressão limitados, até
pelo número de caracteres. Em tal contexto, a concisão toma a forma de
acusações, em que vale somente o valor retórico ou demagógico do que é
transmitido, sem a necessária atenção à verdade do que foi comunicado.
Tuitar, como o exibiu a campanha do atual presidente, tornou-se um
elemento imprescindível em eleições, em que prevalecem acusações e
denúncias, sem que se estabeleça nenhum diálogo e, por consequência,
nenhum debate ou troca de pensamento. Ganha quem souber transmitir uma
mensagem, independentemente de sua coerência, falsidade ou consistência.
É bem verdade que o contexto da vitória era propício a tal tipo de
campanha, pois a sociedade brasileira estava farta da corrupção e dos
governos petistas, clamando por mudanças. Logo, chamando alguém capaz de
personificá-las. A hábil estratégia de comunicação da equipe do
candidato Bolsonaro foi exímia ao alcançar tal objetivo.
Acontece, porém, que as demandas de governar são de outro tipo, exigindo
um pensamento de outra espécie, mais elaborado, caracterizado pela
consideração do outro como adversário, e não como inimigo, e por
propostas de quais serão os programas de governo para uma transformação
do Estado. Aqui intervém o tempo de elaboração de ideias, suas formas de
implementação e seus instrumentos mais adequados. O twitter eleitoral,
tornado twitter presidencial, pode ser de valia, sempre e quando
acompanhado por uma comunicação digital institucional e uma atenção
particular para a mídia tradicional, em particular a impressa.
O recente episódio envolvendo uma jornalista do Estadão e a imediata
reação presidencial é uma amostra do que não deve ser feito, um exemplo
da identificação indevida entre tuitar e governar. A jornalista
Constança Rezende terminou sendo envolvida numa rede de fake news,
voltada para desacreditá-la e “denunciar” o próprio jornal, tornado,
então, “inimigo”. A jogada do suposto blogueiro é nada mais do que
pueril, própria de pessoa de má-fé, ideologicamente guiada. Chegou a ser
desautorizado pelo próprio site.
Note-se, a propósito, que o Estadão é um jornal de longa tradição
liberal, não se encaixa minimamente no perfil de esquerdista ou petista,
sua característica principal é a adesão à liberdade como princípio.
Soube se opor a regimes autoritários no transcurso de sua história,
tampouco se curvou à hegemonia petista. Não poderia haver alvo mais
inadequado. Ganhou, no entanto, dimensão global (sendo originário da França) ao ser
tomado por verdadeiro pelo presidente da República, que se apressou a
considerar tal falsidade como se fizesse parte de uma conspiração contra
o atual governo. A cautela deveria ter sido de rigor, exigindo,
portanto, uma averiguação preliminar de se tal “notícia” era ou não
verdadeira. Houve um problema de assessoria, o presidente não se pode
arriscar indevidamente. Há toda uma liturgia do cargo que deve ser
observada.
Quando se parte de uma suposta doutrina da conspiração, seu perigo maior
consiste em que qualquer opinião divergente é tomada como se fosse
inimiga. A divergência e a crítica fazem parte de qualquer sociedade
democrática e como tal devem ser consideradas. A mídia tradicional não é
inimiga, mas uma espécie de poder social independente, seu
comprometimento maior é com a notícia verdadeira, editoriais
responsáveis e artigos analíticos. Ora, para preencher essa sua função é
primordial que tenha independência e rigor em suas fontes
investigativas.
A mídia impressa, da qual este jornal é um exemplo, não perde sua
importância num mundo de comunicação digital. É ela que se torna um
bastião para a averiguação das fake news e do que se propaga, sem
nenhuma regra ou controle, no mundo virtual. É ela também que subsidia
as redes sociais, que tomam dela boa parte de suas “matérias” e
“notícias”. Atrever-me-ia a dizer que a mídia impressa é cada vez mais
importante numa sociedade digital, servindo-lhe como referência e âncora
da verdade e da análise, lugar do pensamento. O problema está em que a
publicidade não leva em conta esse fator central, fazendo a mídia
impressa viver uma crise financeira atrás da outra. O paradoxo consiste
em que a mídia impressa é cada vez mais necessária num mundo virtual e
suas condições de existência são progressivamente mais precárias.
Do ponto de vista governamental, pode haver total sintonia entre uma
comunicação digital presidencial, uma comunicação digital institucional e
uma comunicação de mídia tradicional. O que não convém é identificá-las
e confundi-las. O próprio presidente da República, por intermédio de
seu porta-voz, general Rêgo Barros, e de seu secretário de Comunicação
Social, Floriano Amorim, sinalizou uma correção de rota ao convidar
jornalistas para dois cafés da manhã. O que conta, aqui, é o fato de o
presidente ter aberto essa forma de comunicação ao reconhecer a mídia
impressa e a televisiva como interlocutoras. Faltava, evidentemente,
esse tipo de interlocução, agora é ampliá-la.
O Brasil vive uma oportunidade única de mudança. O presidente Bolsonaro
foi eleito por personificar a luta contra a corrupção, por suas firmes
posições antipetistas e por sua contestação frontal do politicamente
correto. Tem a sorte de o PT estar completamente desorientado, agindo
como biruta de aeroporto. A rigor, não tem oposição, salvo a que parece
estar fazendo a si mesmo, com uso abusivo de tuítes e divergências
internas, de cunho ideológico, completamente desnecessárias.
Urge a mudança e para tal o bom senso deveria prevalecer.
Denis Lerrer Rosenfield - Professor de filosofia na UFRGS - O Estado de S. Paulo
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