Em
dueto patético com Amorim, a presidente, sempre distante do Brasil e agora
afastada, trama uma
carta em que prometeria uma guinada à esquerda quando (!) voltar ao governo
Lembrando
os melhores e tão antigos sentimentos da humanidade, testados e aprovados pelo
tempo e desafiados ou confirmados por novas tecnologias, eu o cumprimentei com
naturalidade e cautelas. Era o
aniversário de um amigo nosso e este querido amigo esquerdista, que morara
na minha casa por meses numa fase complicada da vida dele, havia me bloqueado
no Facebook e transmitido recados por outros
amigos para que não o procurasse enquanto eu apoiasse “o golpe”. Já sabia que ele estava muito feliz com o trabalho para
o qual eu o indicara depois da interdição estúpida e também que ele não o aceitaria
se soubesse disso. Portanto, pedi discrição aos envolvidos.
Celso Amorim reclama da guinada à
direita da política externa brasileira; para ele e espécimes afins,
importa mais se o lado é direita ou esquerda, e menos se é o lado do Brasil.
De fato, José Serra, lúcido e audacioso na guinada da política externa de volta
à decência e aos interesses do país, em algumas semanas reverteu o degradante
posicionamento do Brasil dos últimos 13 anos. Em dueto patético com Amorim, a
presidente, sempre distante do Brasil e agora afastada, trama uma carta em que
prometeria uma guinada à esquerda quando (!) voltar ao governo.
Na
realidade, dimensão a que Dilma é impermeável, esta
seria uma carta de despedida definitiva e consolaria os simpatizantes, defensores
e demais espécies afins que não cogitam o pato selvagem de Ibsen, aquele
domesticado por um ferimento inquietando existências abarrotadas de certezas,
mas insuspeito para aquelas em cativeiro ideológico ou mental.
Raramente alguma
delas questiona ou manifesta uma reflexão individual. Dilma, que deve ignorar Ibsen – o
dramaturgo das individualidades atravessadas pelo autoquestionamento, pela
percepção de si como ser múltiplo na impermanência dos desejos e das certezas
–, também quer cuidar pessoalmente do próprio perfil no Facebook,
animada com a reação positiva dos e das internautas.
Em “O pato selvagem”, o homem comum se
apresenta na vulnerabilidade de quem protege a felicidade num autoengano, em
que a mentira tem a virtude de não tirar dele tudo o que ele tem e que impede
que a vida se esvazie; a mentira é até mesmo essencial para vitalizar uma
verdade: a jovenzinha Hedvig ama o pai e por ele é amada sem que saibam que não
têm o mesmo sangue; quando a verdade vem à tona, o amor tão verdadeiro é encoberto
por uma falsidade só aparente e tudo desmorona.
Mas esses
personagens, de dentro da mentira essencial deles, não faziam mal a ninguém e faziam o bem a si próprios, apesar de
inquietações produzidas pela sombra do que lhes parecia real e quem desvelou a situação
– com que direito? – fez triunfar uma falsidade. A blogueira do Alvorada sem conexão com o real não é uma pessoa comum em razão da parvoíce prepotente e não
é uma cidadã comum, mas a presidente da República, e infelicitou – com autoenganos, mentiras e delinquências
– o Brasil e a vida dos brasileiros.
Naquele
aniversário, amigos reclamavam que as relações pessoais estão empobrecidas, que
as pessoas não interagem mais, ficam grudadas aos celulares, aos tablets etc.
Discordei porque acho que isso também é interação, conexão, aproximação e tal,
em que o humano pulsa. Ah, mas, às vezes, um deles disse, você vê casais de
namorados ou mesmo pessoas casadas em que cada um dos pares está no próprio
mundo, ligado mais na tela do celular do
que na companhia; adolescentes que não conversam com os pais.
Discordei outra vez porque: 1 – “o próprio mundo” é
um direito inegociável, deveria estar na declaração universal dos direitos
humanos;
2 – se o par amoroso prefere a interação
virtual àquela com o(a) parceiro(a) presente, esse namoro ou casamento já
acabou e a
culpa/responsabilidade não terá sido da tecnologia, aliás, talvez o casal ainda
esteja junto por causa dela que dá alguma sobrevida a essa melancolia a dois;
3 – adolescentes habitam um
planeta paralelo, mas eles vêm nos visitar (aos pais) de vez em quando e o segredo é
não cobrar a ausência, mas celebrar a presença.
Como tudo
concebido pelo homem, a tecnologia é projeção do nosso espírito, pode,
portanto, servir a delícias e aflições. Buscar umas e outras é questão de
escolha, inclinação e, sempre, bom senso. Meu amigo querido respondeu ao
cumprimento como imaginei: em nome da nossa amizade, “exigia” saber se tinha sido eu quem o indicara para o trabalho. Pensei na mentira vital, nos nossos
autoenganos, na importância ilusória das coisas impermanentes que nos faz
mesquinhos, nas nossas felicidades à mercê do real e quis chorar e falar de
Ibsen.
Em vez
disso, tentando ser leal ao que remanesce e que não sei bem o que é, sorri e
menti: claro que
não. E, para que a claridade não
ameaçasse o autoengano do amigo querido que não tenho mais, completei: nossa
amizade de mais de 20 anos está bloqueada e não houve golpe, houve impeachment.
Fonte: Coluna do Augusto
Nunes