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sábado, 24 de julho de 2021

Os dentes e os espaços - Alon Feuerwerker

Análise Política

Quando você age sobre a realidade, necessariamente a transforma. Mas aí ela também acaba transformando você. Ação e reação. Parece inevitável que a participação cada vez maior, e institucional, das Forças Armadas na política partidária termine abrindo espaço para a explicitação de debates político-partidários no interior mesmo da corporação. Aliás o vice-presidente Hamilton Mourão já advertiu sobre isso. [lembrete: apesar de muitos acalentarem o desejo  de retirar tudo dos militares, vão ficar apenas acalentando.
Os militares não são, e nunca serão, cidadãos de segunda classe e possuem o direito inalienável da preferência política. O direito aos debates político-partidários deve existir e ser exercido - com as mesmas limitações que se aplicam aos servidores públicos civis, Nem mais, nem menos
.]

Digo “explicitação”, e não “introdução”, pois seria ingenuidade, a qualquer momento, interpretar como apoliticismo a falta de manifestações explícitas de partidarismos no estamento militar.  Dois dos presidentes do período 1964-85 cuidaram com esmero de prevenir esse jogo recíproco, em que as Forças politizam e ao mesmo tempo são politizadas, ou partidarizadas: Humberto de Alencar Castelo Branco e Ernesto Beckmann Geisel. O primeiro operou uma reforma militar também com esse objetivo, e o segundo decapitou a resistência à distensão.

Ações que contribuíram de maneira importante para fechar o ciclo da anarquia militar no Brasil do século 20, cujo marco inaugural havia sido a eclosão do tenentismo. Ter deixado isso para trás era apontado até outro dia como conquista da Nova República. Não parece estar sobrando muito das conquistas da Nova República. [a principal e quase única conquista (se é que pode ser chamada de conquista) da Nova República foi a roubalheira implantada no Brasil, desde 1985. A maldita corrupção é que deve ser extirpada - ela e os seus praticantes.]  Em parte, os militares têm sido puxados para a política nos anos recentes pelo vácuo nascido da desmoralização e do desgaste das demais instituições nacionais. Isso ganhou nova dimensão quando Jair Bolsonaro, sem um partido para chamar de seu, acabou recorrendo aos fardados, da ativa e da reserva, como estoque de quadros e de doutrinas para tocar o governo.

A realidade é implacável, e o poder não se resume às delícias dele, carrega também os riscos decorrentes das delícias. E aí o noticiário começa a trazer confusões ligando duas coisas: militares e verbas orçamentárias. E agora com números de alto impacto vindos dos recursos destinados pelo governo e pelo Congresso ao combate da Covid-19. Na falta de eventos de ruptura, a vida segue, e nela sempre chega a hora de ter de dar alguma explicação. Na escalada da politização, as recentes manifestações do Ministério da Defesa e dos comandantes militares vêm reiterando: as Forças estão aí para defender a liberdade e a democracia. Ecoam palavras do próprio presidente da República. Falta, até o momento, dizer se ambas estão sob ameaça. [quando qualquer instituição, órgão, adota alguma medida arbitrária, especialmente se contra apoiadores do presidente Bolsonaro, é de pronto alegado como justificativa para a arbitrariedade que a democracia está sendo em risco, ou que a vítima do arbitrio praticou algum ato antidemocrático. Até ministros do STF usam tal argumento.]  E falta também, nesse caso, a explicação mais importante: quem ameaça.

Enquanto tal detalhe não fica claro, ao menos segue o baile. No terreno por eles pouco conhecido da política, até agora os militares estão levando uma certa canseira dos políticos. Os primeiros andam ocupados em mostrar os dentes, estes últimos preferem concentrar-se em tomar espaços de poder daqueles.  E nem Jair Bolsonaro pode ajudar muito, já que depende dos políticos para se manter na cadeira, inclusive depois de 2022, se se reeleger. O que pelo jeito vai ser decidido mesmo na urna eletrônica, apesar das dúvidas e arranca-rabos. Se bem que neste ponto é sempre adequado contar com novas emoções. 

Alon Feuerwerker, jornalista e analista político


segunda-feira, 27 de abril de 2020

Acepções da direita - Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de S.Paulo

Os liberais uniram-se ao atual presidente na luta comum contra o PT, mas dele se afastaram

Dentre as inúmeras confusões do atual cenário político, destaque-se a tendência a atribuir tudo o que o presidente Bolsonaro faça à direita, genericamente concebida. Para alguns, seu eventual fracasso significaria o fracasso “da direita”. A realidade, porém, é muito mais complexa, o País apresenta um leque diversificado de “direitas”: extrema direita, direita conservadora e direita liberal. Se há alguns anos o Brasil estava preso à oposição “direita x esquerda”, hoje a luta política se deslocou para confrontos dentro do campo da direita. O inimigo de Bolsonaro, na pandemia, é João Doria ou Luiz Henrique Mandetta, não Lula e o PT – estes estão desaparecidos de cena. O presidente, aliás, necessita urgentemente da sua volta!

Bolsonaro e seu clã constituem um perfil ideológico que poderíamos denominar de extrema direita; é formado pelo presidente, por sua família, seus assessores mais diretos, um ideólogo identificado com a extrema direita americana e um grupo digital que a eles adere sem nenhum critério crítico. 

Eis alguns pontos centrais: 
1) Sua concepção política está baseada na distinção amigo/inimigo, sempre precisando de alguém para atacar. O diálogo não faz parte dessa concepção por necessitar apontar alguém como inimigo a ser destruído (Lula, a esquerda, Doria, Mandetta, as instituições, Rodrigo Maia, a imprensa, os meios de comunicação, o “sistema”, os políticos, e assim por diante). 

2) Em decorrência, necessita do confronto permanente, até mesmo levando instabilidade às instituições. 

3) Apoia-se numa teoria conspiratória, própria desse tipo de concepção. Apresenta-se como “vítima” do “sistema”, dos “políticos”, tidos por definição [só por?] como corruptos, dos que querem abatê-lo das formas mais secretas. 

4) Em sua luta contra o “sistema” e a “conspiração”, as instituições democráticas são consideradas obstáculos que devem ser removidos, não têm nenhum valor em si mesmas. 

5) Diz falar em nome do “povo”, mas isso significa tão somente os que o seguem fanaticamente nas redes sociais. Ao se pautar por redes sociais controladas e incentivadas por seus filhos e seguidores, robôs incluídos, além dos seus apoiadores que se aglomeram no Palácio do Alvorada, diz estar falando em nome do “povo”. 

6) O desprezo pela ciência é outro dos seus pontos centrais, algo claro no combate à pandemia, não seguindo nenhum critério científico ou técnico. A ignorância sobre o que seja a ciência é total, não seguindo regras e critérios vigentes na comunidade científica, de validade internacional. 

7) Uso intensivo de fake news nas redes sociais, tornando a mentira e as acusações arbitrárias instrumentos políticos.


A direita, na acepção conservadora, caracteriza-se pela defesa de valores provenientes da tradição e da religião, assim como das instituições existentes. Nesse sentido, privilegia a ordem e o que está publicamente estabelecido. Um exemplo pode ser bem ilustrativo. O estamento militar, no Brasil e no mundo, é de perfil conservador, dada a mentalidade específica que lá se cria. Dentre os seus valores, salientem-se 
1) o respeito à hierarquia, mediante comandantes transmitindo suas ordens de acordo com as orientações de sua própria instituição; 
2) o mérito como critério de ascensão hierárquica, o que pressupõe cursos e estágios que se tornam condições para qualquer promoção; 
3) a família como valor maior, presente em expressões como a “família militar”; 
4) o coleguismo e a ajuda mútua, algo que se aprende nos estudos sobre a guerra, assim como na vivência do dia a dia; e 
5) o respeito à ordem pública, que se traduz pelo respeito à própria Constituição, à qual todos devem obediência.

O Judiciário, também, tem uma estrutura conservadora, baseada na defesa das leis, que devem resistir ao tempo. É bem verdade que, em seu seio, posições de esquerda se introduziram, como as oriundas do direito dito “alternativo” e do “intervencionismo político”, que dita leis ao arrepio das leis.

Os liberais, por sua vez, têm ganho muito espaço nos anos recentes, sobretudo na área econômica, embora na pandemia venham sofrendo um baque. Coloca-se, agora, a questão da redefinição do papel do Estado, inclusive com a tendência de tornar medidas emergenciais definitivas. O plano “desenvolvimentista”, dito Marshall, anunciado pela Casa Civil, sem a participação da área econômica, mostra o recuo de um liberalismo econômico que parecia assentado.

A direita liberal, contudo, não está acantonada na área econômica, expandiu-se politicamente, tornando-se presente em movimentos e organizações sociais que se estruturam por valores liberais, incidindo em questões comportamentais e numa concepção liberal da sociedade, em contraponto tanto à direita conservadora quanto, mais diretamente, à extrema direita.

Os setores liberais uniram-se ao atual presidente na luta comum contra o PT, mas dele se afastaram em suas diatribes contra qualquer divergência e em questões comportamentais e culturais. “Votei contra o PT, e não pela família presidencial e por suas concepções e seus valores”, tornou-se mote comum. Novas oposições aí se desenham.


 Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia  - O Estado de S. Paulo