O Estado de S.Paulo
Os liberais uniram-se ao atual presidente na luta comum contra o PT, mas dele se afastaram
Dentre as inúmeras confusões do atual cenário político, destaque-se a
tendência a atribuir tudo o que o presidente Bolsonaro faça à direita,
genericamente concebida. Para alguns, seu eventual fracasso significaria
o fracasso “da direita”. A realidade, porém, é muito mais complexa, o
País apresenta um leque diversificado de “direitas”: extrema direita,
direita conservadora e direita liberal. Se há alguns anos o Brasil
estava preso à oposição “direita x esquerda”, hoje a luta política se
deslocou para confrontos dentro do campo da direita. O inimigo de
Bolsonaro, na pandemia, é João Doria ou Luiz Henrique Mandetta, não Lula
e o PT – estes estão desaparecidos de cena. O presidente, aliás,
necessita urgentemente da sua volta!
Bolsonaro e seu clã constituem um perfil ideológico que poderíamos
denominar de extrema direita; é formado pelo presidente, por sua
família, seus assessores mais diretos, um ideólogo identificado com a
extrema direita americana e um grupo digital que a eles adere sem nenhum
critério crítico.
Eis alguns pontos centrais:
1) Sua concepção política está baseada na distinção amigo/inimigo,
sempre precisando de alguém para atacar. O diálogo não faz parte dessa
concepção por necessitar apontar alguém como inimigo a ser destruído
(Lula, a esquerda, Doria, Mandetta, as instituições, Rodrigo Maia, a
imprensa, os meios de comunicação, o “sistema”, os políticos, e assim
por diante).
2) Em decorrência, necessita do confronto permanente, até mesmo levando instabilidade às instituições.
3) Apoia-se numa teoria conspiratória, própria desse tipo de concepção.
Apresenta-se como “vítima” do “sistema”, dos “políticos”, tidos por
definição [só por?] como corruptos, dos que querem abatê-lo das formas mais
secretas.
4) Em sua luta contra o “sistema” e a “conspiração”, as instituições
democráticas são consideradas obstáculos que devem ser removidos, não
têm nenhum valor em si mesmas.
5) Diz falar em nome do “povo”, mas isso significa tão somente os que o
seguem fanaticamente nas redes sociais. Ao se pautar por redes sociais
controladas e incentivadas por seus filhos e seguidores, robôs
incluídos, além dos seus apoiadores que se aglomeram no Palácio do
Alvorada, diz estar falando em nome do “povo”.
6) O desprezo pela ciência é outro dos seus pontos centrais, algo claro
no combate à pandemia, não seguindo nenhum critério científico ou
técnico. A ignorância sobre o que seja a ciência é total, não seguindo
regras e critérios vigentes na comunidade científica, de validade
internacional.
7) Uso intensivo de fake news nas redes sociais, tornando a mentira e as acusações arbitrárias instrumentos políticos.
A direita, na acepção conservadora, caracteriza-se pela defesa de
valores provenientes da tradição e da religião, assim como das
instituições existentes. Nesse sentido, privilegia a ordem e o que está
publicamente estabelecido. Um exemplo pode ser bem ilustrativo. O
estamento militar, no Brasil e no mundo, é de perfil conservador, dada a
mentalidade específica que lá se cria. Dentre os seus valores,
salientem-se
1) o respeito à hierarquia, mediante comandantes
transmitindo suas ordens de acordo com as orientações de sua própria
instituição;
2) o mérito como critério de ascensão hierárquica, o que
pressupõe cursos e estágios que se tornam condições para qualquer
promoção;
3) a família como valor maior, presente em expressões como a
“família militar”;
4) o coleguismo e a ajuda mútua, algo que se aprende
nos estudos sobre a guerra, assim como na vivência do dia a dia; e
5) o
respeito à ordem pública, que se traduz pelo respeito à própria
Constituição, à qual todos devem obediência.
O Judiciário, também, tem uma estrutura conservadora, baseada na defesa
das leis, que devem resistir ao tempo. É bem verdade que, em seu seio,
posições de esquerda se introduziram, como as oriundas do direito dito
“alternativo” e do “intervencionismo político”, que dita leis ao arrepio
das leis.
Os liberais, por sua vez, têm ganho muito espaço nos anos recentes,
sobretudo na área econômica, embora na pandemia venham sofrendo um
baque. Coloca-se, agora, a questão da redefinição do papel do Estado,
inclusive com a tendência de tornar medidas emergenciais definitivas. O
plano “desenvolvimentista”, dito Marshall, anunciado pela Casa Civil,
sem a participação da área econômica, mostra o recuo de um liberalismo
econômico que parecia assentado.
A direita liberal, contudo, não está acantonada na área econômica,
expandiu-se politicamente, tornando-se presente em movimentos e
organizações sociais que se estruturam por valores liberais, incidindo
em questões comportamentais e numa concepção liberal da sociedade, em
contraponto tanto à direita conservadora quanto, mais diretamente, à
extrema direita.
Os setores liberais uniram-se ao atual presidente na luta comum contra o
PT, mas dele se afastaram em suas diatribes contra qualquer divergência
e em questões comportamentais e culturais. “Votei contra o PT, e não
pela família presidencial e por suas concepções e seus valores”,
tornou-se mote comum. Novas oposições aí se desenham.
Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia - O Estado de S. Paulo
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