Paulo Polzonoff Jr.
Vergonhoso. Lamentável. Deplorável. Estupefaciente (sempre quis usar essa palavra). Esses foram os adjetivos que me vieram de pronto à mente assim que terminei de acompanhar o pronunciamento do ministro Luiz Fux, presidente do STF, na sessão de encerramento dos trabalhos do Judiciário este ano. Já posso encerrar os trabalhos do Polzonoffiário este ano também, chefinho?
Luiz Fux: STF
perdeu qualquer resquício de pudor e hoje se orgulha de ser um “tribunal de
vanguarda” - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Como, porém, nos aproximamos de uma época festiva, acho que vale a pena
destacar desde já a única coisa boa do discurso do ministro, isto é, o fato de
ele dizer tudo abertamente, para quem quiser ouvir. Fux e o STF não têm mais
vergonha do ativismo, muitos menos do caráter explicitamente progressista da
corte. Não à toa, já no finalzinho Fux encheu a boca para dizer que o STF hoje
é um “tribunal de vanguarda”. Para bom entendedor, me.
Fora o fato de o STF já não usar mais a máscara simbólica de instituição
guardiã da nossa Carta Magna, não há absolutamente nada que se salve no
discurso de Luiz Fux. Os ministros agem como entes políticos. E nem é como
poder moderador, embora lá no finalzinho do discurso Fux tenha ousado dizer que
o Judiciário é, sim, o garantidor da estabilidade democrática.
Eles agem mesmo ora como partido de oposição, ora como um Poder Executivo Paralelo, capaz de determinar ações em todas as esferas da administração pública. “Somos o único tribunal do mundo com um observatório do meio ambiente”, orgulha-se o semipresidente, ops, ministro Fux depois de citar várias ações progressistas que contam com o carimbo orgulhoso do STF.
Só podem estar loucos
O discurso já começou com o ministro Luiz Fux chamando para o STF a
responsabilidade pela gestão “maravilhosa” da pandemia: outra atribuição que,
em termos normais, seria do Poder Executivo. Como num jogo de vôlei solitário,
Fux levanta a bola para ele mesmo cortar e dizer que o STF é a favor da ciência
(oh!) e contra o quê? Sim, ele mesmo, o negacionismo!
Mas tudo bem. No Brasil é assim: os ministros fingem que são uma corte
constitucional inspirada na Suprema Corte norte-americana – e a gente finge que
acredita nesse delírio. Até porque se não acreditarmos podemos incorrer no
gravíssimo crime de “ameaça retórica”, mencionado por Fux para se vangloriar da
ação do Supremo na defesa da democracia. Faz-me rir.
Por falar em delírio, logo depois de exaltar a atuação do STF no combate à
pandemia, Luiz Fux melancolicamente revela o quanto o poder isola e cria para
si uma realidade muito particular. Porque, em se acreditando na sinceridade das
palavras dele, o STF de fato se vê como uma instituição de representação
popular. Não, não estou viajando na maionese. Foi o próprio Fux quem disse que
o STF “cumpre a missão conferida pela população brasileira”, para em seguida
agradecer “o amor e a admiração” que a maioria dos brasileiros nutriria pelo
colegiado.
Neste momento fiz aqui no meu caderninho uma anotação triplamente sublinhada
que diz “Só podem estar loucos!!”. Será que isso pode ser considerado “ameaça
retórica”? Por garantia, foi sem querer, hein, ó plenipotenciário ministro!
No rol das sandices supremas, não posso ignorar o fato de todo o blá blá blá
envolvendo a proteção da Constituição ter sido acompanhado por uma arrojada
confissão de que é a Agenda 2030 da ONU o que norteia as ações do STF. A Agenda
2030 da ONU, e não a Constituição do Brasil, aquela que pode até ser uma
estrovenga, mas que bem ou mal ainda reflete o que pensa a sociedade
brasileira. O fato de muitos itens da Agenda 2030 entrarem em conflito com a
Constituição não é um problema. Afinal, lembre-se de que no Brasil vigora um
pacto de cinismo e quem disser que o STF não é corte constitucional estará cometendo
“ameaças retóricas” contra a instituição.
Atos falhos
Boquiaberto com a fala de Fux, assim que a palavra foi passada ao ministro
Ricardo Levandowski (que, com todo o respeito, sabe bajular como poucos os
colegas) me permiti, primeiro, imaginar como seria o discurso ideal de um
ministro do STF. Antes de mais nada, deveria prezar pela discrição. Ou seja,
nem deveria ocorrer.
Mas já que ocorre, me deixei levar pelo sonho de ter na presidência do Supremo
Tribunal Federal uma pessoa capaz de dizer que, olha, passamos um pouquinho do
ponto este ano, prendendo dissidentes conservadores por crimes que nem existem.
Neste meu delírio, vejo-o saindo de trás da bancada, indo até o ministro
Alexandre de Moraes, puxando a orelha dele e dizendo: “Ai, ai, ai, que feio!”.
Daí contei com a agilidade da minha imaginação para sair da pré-escola e entrar
num consultório de psicanálise, tantos foram os atos falhos de Fux nesse
discurso. A certa altura, por exemplo, ele fala que o STF vai “agir e reagir”.
Quanto a reagir, tudo bem; mas agir, ministro? Ah, claro. Infelizmente insisto
em me esquecer de que a maioria daqueles senhores e senhoras cresceu ouvindo
que deveriam ser agentes de transformação social.
Adiante, e depois de mencionar números que impressionam pelo absurdo (das 95
mil ações julgadas pelo STF ao longo do ano, 80 mil foram decisões
monocráticas), Fux se põe a mencionar mil e uma ações políticas, evidentemente
atribuições de outras esferas. Ao perceber que se perdeu no papel e que aquelas
ações todas revelavam o quanto o STF gostava de passear pelos outros poderes,
ele se sai com um esclarecedor “Agora voltando ao nosso poder...”.
E, já no finalzinho, Fux bota uma medalhinha no próprio peito progressista para
dizer que sua gestão consolida o STF como um “tribunal de vanguarda”. Ou seja,
um tribunal explicitamente revolucionário, composto por ministros esclarecidos
e guiados pelo “projeto global” (expressão de Fux) da Agenda 2030 da ONU, e que
claramente vê o presidente Jair Bolsonaro como um obstáculo às suas ambições.
Diante de neuroses ideológicas tão claras, fico me perguntando qual seria o
diagnóstico desse psicanalista imaginário. E, mais importante, qual seria a
linha de tratamento. Tive um amigo que costumava reclamar da psicanálise,
dizendo que, para consertar um vaso lascado, a psicanálise propunha que o
próprio vaso se quebrasse em mil pedacinhos e fosse pouco a pouco remontado. E
que, antes disso, o vaso tinha de reconhecer a lasquinha que tanto o incomoda.
A julgar pelo que disse Fux, o STF não reconhece que está lascado e, obviamente, não quer passar pelo sofrido processo de reconstrução a partir da autocrítica. Ao contrário, o STF, esse narcisista, segue se vendo no papel de liderar o país rumo a uma utopia. E ninguém haverá de detê-los.
Paulo Polzonoff Jr., colunista - Gazeta do Povo - VOZES