O Estado de S.Paulo
Brasil no epicentro da pandemia, Moro depondo, Bolsonaro e povo sem entender nada
O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, grande orador e um dos maiores
estadistas do século 20, previu numa conferência do InterAction Council,
fundação que reúne ex-chefes de Estado e de governo, em Xangai, em
1994, que o fim do mundo não seria por guerras e bombas, mas sim por uma
doença desconhecida disseminada pelas migrações massivas. O Homo
Sapiens surgiu de uma mutação genética e seria destruído por um vírus.
O relato é do ex-presidente José Sarney, que estava presente, ao lado de
figuras lendárias como Henry Kissinger, Robert Mcnamara e o fundador de
Cingapura, Lee Kuan Yew. Ao completar 90 anos, Sarney mantém íntegros a
memória primorosa e o capricho ao contar histórias, uma característica
dos maranhenses. Quanto ao fim do próprio mundo não se sabe, e espera-se não saber tão
cedo, mas a sensação é de fim do mundo no Brasil, que vai se
transformando no novo epicentro da covid-19, com a economia e os
empregos implodindo e uma crise política absurda. Em meio ao caos, o
presidente da República e milhões de pessoas continuam sem entender
nada.
As manchetes de sábado reproduziam a realidade. Estado: “Impeachment é a
última opção”, segundo o ministro do STF Luís Roberto Barroso; “Ninguém
vai querer dar um golpe em cima de mim”, declarava o presidente Jair
Bolsonaro; “A incógnita Mourão nos bastidores do poder”, informava a
Coluna do Estadão. Globo: “Brasil vira um dos polos globais da
covid-19”. UOL: “Bolsonaro ameaça demitir ministro que não ceder cargos
ao Centrão”. O ex-ministro Sérgio Moro detalhava à PF e ao MP suas acusações ao
presidente. [detalhar não é provar e quanto mais detalhado um depoimento, maior a chance de apresentar fatos;
Frederic Forsyth, fantástico escritor, especialista em livros de ficção, detalhados ao extremo.] Local: justamente a Superintendência da PF em Curitiba, onde
o ex-presidente Lula ficou preso por 580 dias, condenado por Moro e
pelo TRF-4 no caso do triplex do Guarujá. Alvo do depoimento: Bolsonaro,
pivô da ação que pede ao STF o impedimento do ex-juiz nos processos de
Lula. Moro condenou Lula e pode condenar Bolsonaro. Alvo da esquerda
lulista, é agora também da direita bolsonarista.
O destino de Bolsonaro está nas mãos e nas provas que Moro diz ter. O
destino do governo depende institucionalmente do STF e do Congresso e,
politicamente, dos militares e do Centrão. Tudo embrulhado nas milhares
de mortes, a maior recessão da história, um oceano de empresários
quebrados e trabalhadores desempregados e, portanto, um cenário social
nada tranquilizador. Alheio à realidade, o povo volta em massa às ruas e à sanha do
coronavírus, que ganha a guerra sem esforço e adversários. Há os
desesperados que se amontoam para dividir o vírus e a esperança de R$
600,00. Os que enfrentam o vírus “como homens, não como moleques”. E os
perversos, que salvam a própria pele, mas não estão nem aí para a pele
de pobres e trabalhadores.
É assim que o Brasil vai se destacando nas manchetes internacionais e
até nas entrevistas de Donald Trump como a “bola da vez”, mesmo com a
China sob críticas, desconfianças e forte recessão, a Europa juntando os
cacos, a África esperando bovinamente a sua vez e os próprios EUA
atingindo 70 mil mortos e uma avalanche de desempregados jamais vista.
A imagem do Brasil vem sendo devastada por ataques à OMS, votos na ONU, o
presidente contra o isolamento e pró atos golpistas, os textos
alucinados do chanceler Ernesto Araújo. E o casal de bolsonaristas, com a
bandeira nacional, atacando enfermeiros clamando pacificamente por
melhores condições de trabalho e portando cruzes negras pela morte de
colegas?
Em todos os países, homenagem e reverência ao pessoal da saúde, que
arrisca (e perde) a própria vida para salvar vidas. Não na capital do
Brasil. Aqui, até os enfermeiros são “comunistas”, os vilões da
história.
Eliane Cantanhêde, colunista - O Estado de S. Paulo