Revista Oeste
Não podemos ser soldados de uma batalha, é necessário a paixão de um patriota, a sabedoria de um estudioso observador e o fôlego de um general
Muita gente pelo mundo, quando pensa em independência e autonomia, tem na mente os Estados Unidos da América como farol da liberdade, ou a cidade no topo da colina (a city upon a hill) — termo pelo qual o país é chamado desde os tempos da colonização. A expressão bíblica “Uma cidade sobre uma colina” é uma frase presente no Sermão da Montanha de Jesus, e, em um contexto moderno, é usada na política dos Estados Unidos para se referir à América agindo como “farol de esperança” para o mundo.
Grande parte dessas pessoas, no entanto, não conhece ou talvez não se atente aos detalhes do que fez os Estados Unidos um ponto de luz em tempos obscuros. Não foram apenas políticas acertadas e lições extraídas dos erros que colocaram nos pilares genéticos dessa nação a palavra resiliência. Também não é difícil achar frases inspiradoras de grandes presidentes norte-americanos, como Abraham Lincoln e Ronald Reagan, por exemplo, para serem usadas em tempos de dúvidas e destemperos. O que muitos não visualizam é que a persistência na vontade do progresso diário desses presidentes e do povo americano está na concepção da nação, nas escolhas pensadas das 13 colônias originais, que, de maneiras diferentes, encontraram um ponto importante em comum. E, claro, em homens como Samuel Adams, John Adams e George Washington.
Durante os anos que precederam à Revolução Americana, Samuel Adams, também considerado um dos Pais Fundadores da América e primo de John Adams, o segundo presidente norte-americano, foi um propagandista e político apaixonado que não era excessivamente escrupuloso em seus ataques às autoridades e políticas britânicas. Em inúmeras cartas de jornais e ensaios com várias assinaturas, ele descrevia as medidas britânicas e o comportamento dos governadores reais, juízes e homens da alfândega nas cores mais escuras. Ele era um mestre da organização, planejava auspiciosamente a eleição de homens que concordavam com ele, obtendo influência em comitês que agiriam como desejasse, assegurando a aprovação das resoluções que almejava.
Sam Adams era também um agitador. Muitas vezes usou seu inquietante espírito para inflamar manifestações e chegou até a pedir o enforcamento dos soldados britânicos no famoso episódio do Massacre de Boston — erroneamente, sem o julgamento adequado (vale muito a pena assistir ao primeiro episódio da série John Adams, da HBO que trata sobre esse evento!) Samuel foi membro da convenção que moldou a Constituição de Massachusetts de 1780 e participou da convenção de seu Estado que ratificou a Constituição Federal. Ele foi, a princípio, um antifederalista que se opôs ferozmente à ratificação da Constituição por medo de que ela atribuísse muito poder ao governo federal. Abandonou sua oposição radical quando os federalistas prometeram apoiar uma série de emendas futuras, incluindo o projeto de lei de direitos. Por amor a seus propósitos e comprometido com a liberdade, jurou lutar contra a tirania dos atos britânicos e foi um dos homens que ajudaram a montar uma forte milícia e uma rede de inteligência contra uma superpotência.
Já seu primo, John Adams, um excelente advogado de Boston, havia se tornado membro visível do movimento de resistência que questionava o direito dos britânicos de tributar as colônias americanas sem que elas tivessem nenhuma representação no Parlamento. Intensamente combativo, cheio de dúvidas particulares sobre suas próprias capacidades, mas nunca sobre sua causa, Adams tornou-se uma figura importante na oposição à Coroa inglesa. Depois da revolução, por ser a personificação oficial da independência americana do Império Britânico, John Adams foi ignorado e relegado para a periferia do centro político com a Corte britânica durante os quase três anos em que morou em Londres. No entanto, foi durante esse tempo que Adams se dedicou ao aprofundamento da história da política europeia em busca de padrões e lições que pudessem ajudar o incipiente governo americano em seus esforços para alcançar o que nenhuma grande nação europeia havia conseguido produzir: uma forma republicana estável de governo.
O resultado foi uma coleção maciça e heterogênea de três volumes de citações e observações pessoais intitulada Uma Defesa das Constituições de Governo dos Estados Unidos da América (A Defense of the Constitutions of Government of the United States of America –1787). Esses longos trabalhos continham os insights de John Adams como pensador político. Ele desejava alertar seus compatriotas americanos contra todos os manifestos revolucionários que visavam a uma ruptura com o passado e uma transformação abrupta na natureza humana ou na sociedade que supostamente produziu uma nova era. Adams acreditava que todas essas expectativas reacionárias eram utópicas, impulsionadas pelo que chamou de “apenas ideologia” — a crença de que ideais imaginários, tão reais e sedutores em teoria, eram capazes de ser implementados no mundo e na nova nação, mas com um alto preço a ser pago. Como segundo presidente, evitou escolher a glória, a elevação de seu nome e uma fácil reeleição ao negar entrar em uma guerra ao lado da França, por amor e proteção à sua pátria. O ego não foi o seu norte.
Samuel e John Adams tornaram-se líderes da facção que rejeitou as perspectivas de reconciliação com a Grã-Bretanha. Primeiros a pedir uma separação final dos ingleses, assinaram a Declaração de Independência e exerceram considerável influência no Congresso. Porém, os primos, muitas vezes chamados de “Adams brothers”, eram totalmente diferentes nas estratégias que ajudaram a impulsionar as 13 colônias britânicas na América do Norte a status de nação, hoje bastião da liberdade no Ocidente.
Dentre os bravos — e profundamente distintos — homens que forjaram a nação mais próspera do mundo, está George Washington, o personagem mais influente a enfeitar as páginas dos livros de história americana. Seu efeito no mundo é incomensurável e ilimitado. Washington liderou as colônias, contra todas as probabilidades de vitória, a derrotar o Império Britânico para se tornar uma nação livre. Mais tarde, comandou o novo país durante os primeiros oito anos sob a Constituição e deu o exemplo para todos os futuros presidentes. O primeiro governante norte-americano decidiu fortalecer a América e fez exatamente isso, criando uma potência mundial que se tornaria o farol para a liberdade no mundo. Seu legado, além da forte administração, está nas lições de comprometimento durante toda a Revolução Americana.
Quando olham para uma pintura de George Washington, muitos imaginam um general destemido e imbatível, que derrotou uma grande potência. Destemido, sim. Imbatível, nem tanto. O que poucos sabem quando seguram uma nota de US$ 1, onde o seu rosto está estampado, é que, apesar da pouca experiência prática na gestão de grandes exércitos convencionais, Washington provou ser um líder capaz e resiliente das forças militares americanas durante a Guerra Revolucionária. E — acredite! — perdeu mais batalhas do que venceu. Antes de sua nomeação como chefe do Exército Continental, Washington nunca havia comandado um grande exército no campo. Contudo, a escolha de prioridades e estratégias lhe renderam vitórias cruciais — como a Batalha de Trenton, em 1776, e de Yorktown, em 1781 — que fizeram com que uma revolução praticamente impossível contra um gigante fosse vitoriosa.
O próprio Washington não foi o mais brilhante intelectualmente dos Pais Fundadores. Não era o mais ambicioso nem o mais capaz. Na verdade, Washington não era um Thomas Jefferson. Nem um Alexander Hamilton. E certamente não era um Benjamin Franklin. Ele não elaborou a Constituição, mas a apoiou com suas ações e palavras. Representou tudo o que a América precisava e ajudou a dar o exemplo do que era um americano. Liderou pessoas implementando os pensamentos e os planos de outras mentes brilhantes, para que o país um dia prosperasse. George Washington nunca foi o homem mais inteligente, espirituoso, ambicioso ou carismático. Mas ele foi George Washington, e era exatamente disso que a América precisava.
Na política, como na guerra, você precisa de poder para vencer e não dissipar suas forças lutando em batalhas que, com certeza, perderá
Quando nos falta o ar em desespero contra algo injusto e maior, tento imaginar o que homens como George Washington nos diriam. Seus discursos caem como uma luva, ou como um cobertor quente em corações cansados, como andam os nossos. Em uma sociedade coberta de platitudes vazias e discursos imediatistas, é um alento mergulhar no universo de quem esteve em uma situação muito pior do que a nossa e deparar com mensagens como essa: “Quanto mais difícil for o conflito, maior será o triunfo. A felicidade humana e o dever moral estão inseparavelmente ligados”.
Somos um povo apaixonado, feliz por natureza, mas que está cansado da luta diária contra um emaranhado de configurações políticas que insistem em frear nosso desenvolvimento como nação. Não é difícil desanimar, confesso. Mas é necessário seguir. Sejamos líderes inspiradores em nossas famílias, em nossas comunidades, com os amigos. É preciso tentar incorporar características desses grandes homens nos sonhos, sim, mas, principalmente, na eficácia e no pragmatismo das ações. Na certeza de que existe a utopia de vencer todas as batalhas.
E não precisamos vencer todas as batalhas, mas as certas. Durante os oito anos da Revolução Americana, o general Washington gastou muito mais tempo, pensamento e energia como organizador e administrador das forças militares do que como estrategista tático. Ele enfrentou duras realidades de alistamentos de curto prazo, deserções, soldados malvestidos e sem equipamentos, congressistas e legisladores estaduais lenientes, traidores do movimento. Mesmo assim, soldados e civis confiaram em sua causa, ideais de todos que estavam cansados das injustas arbitrariedades da Coroa britânica.
Essa semana, li um post de um querido amigo em sua rede social que dizia o seguinte: “Thomas Sowell escreveu um tempo atrás que em uma guerra você não trava batalhas que certamente perderá, apenas porque precisará de suas tropas para lutar mais tarde em batalhas que pode vencer. E cita as tropas britânicas que escaparam de Dunquerque e voltaram à França quatro anos depois, como parte das forças de invasão maciça que invadiram as praias da Normandia, libertaram a França e avançaram para a Alemanha para a derrota final do regime nazista. Na política, como na guerra, você precisa de poder para vencer e não dissipar suas forças lutando em batalhas que, com certeza, perderá. ‘Simbolismo e autoindulgência emocional simplesmente não valem a pena’, disse Sowell. O exército comandado pelo general Washington não era páreo para o exército britânico, nem em experiência militar, nem em poder de fogo. O exército americano repetidamente teve que se retirar, recuar e até mesmo fugir para evitar ser aniquilado. Quando Washington fez sua célebre travessia do Delaware, ele se dirigia para uma vitória dramática, usando soldados que selecionou para aquele momento. Guerras são para vencer, não para gestos simbólicos fúteis que a deixam pior”, completou meu amigo em sua brilhante publicação.
Acredito que, no momento, haja apenas um caminho para nós: a história. Em tempos de pura escassez de líderes mundiais inspiradores, é preciso resgatar os bravos exemplos não apenas de liderança, mas de resiliência, estratégia e inteligência emocional. Nosso Brasil não foi contaminado por agentes do retrocesso em poucos anos. E não será em um ou dois ciclos presidenciais, ou trocando algumas cadeiras do Congresso por parlamentares realmente engajados com o nosso futuro, que veremos nosso horizonte ser ampliado. Não estamos em uma corrida de 100 metros, mas em uma maratona olímpica.
Para isso, não podemos ser soldados de uma batalha, é necessário a paixão de um patriota, a sabedoria de um estudioso observador e o fôlego de um general.
É necessário que saibamos ouvir nossa assembleia de vozes com inteligência e escolher a quem ouvir com a alma, jamais com o fígado.
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Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste