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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Nulidade relativa - Merval Pereira

O Globo

Modulação em nome da segurança jurídica e do interesse social

Mesmo sem entrar no mérito da decisão que o Supremo Tribunal Federal (STF) vier a tomar, na conclusão do julgamento sobre qual o alcance da nova regra que exige que o réu delator fale antes dos demais réus nas alegações finais dos julgamentos, houve na sessão de ontem momentos que são definidores da posição de vários ministros, não sem frequência discordantes entre si, mas ontem com algumas concordâncias heterodoxas.  O ministro Marco Aurélio Mello tirou o presidente Dias Toffoli do sério ao classificar a decisão de jeitinho brasileiro”, pois não existe nada que indique na legislação em vigor que réus são diferentes entre si.
[com todas as vênias - afinal,  apesar de respaldado na minha notória ignorância jurídica, não posso esquecer que certos pensamentos são crimes de pensamento no Brasil, na época atual e sob o manto do inquérito secreto do STF, podem gerar, no mínimo, busca e apreensão - lembro que o  ministro Marco Aurélio apesar de algumas vezes aplicar  o direito de forma única - vejam aquela decisão que iria soltar mais de cem mil bandidos presos, entre eles o presidiário petista - em outras vezes acerta de forma magistral, caso presente em que classificou de 'jeitinho brasileiro' a suprema decisão em comento, destacando que ontem já havia declarado que o Supremo não legisla - declaração que não combina com o decidido ontem, pelo STF,  que por sua vez respalda 'legislada' adotada na semana passada.] 
 
Para Marco Aurélio, que se orgulha de estar quase sempre na contramão de seus pares, o STF está legislando sobre um tema que não lhe compete, que deveria ficar a cargo do Legislativo. Ele também foi contra que o plenário definisse uma orientação a ser seguida pelo sistema judiciário como um todo. Disse que uma decisão generalista deixará de lado aspectos específicos de cada caso, impedindo milhares de réus que se considerem prejudicados em seus julgamentos de recorrer. Isso porque a decisão do plenário de anular a condenação de um ex-gerente da Petrobras por ter sido ouvido ao mesmo tempo que seus delatores, deve ser estendida apenas aos que reivindicaram, e não foram atendidos, desde a primeira instância, essa prerrogativa de ser ouvido depois do delator. 

Marco Aurélio alegou, concordando com o ministro Alexandre de Moraes, que haverá um tratamento desigual para casos semelhantes. O ministro Ricardo Lewandowski lembrou que réus que não tiveram condições de pagar um bom advogado podem ter perdido a chance de exigir essa prerrogativa que agora o STF tornou obrigatória. 

Lewandowski e Moraes consideram que a nulidade é absoluta, enquanto Marco Aurelio não vê nulidade alguma. A maioria parece considerar que ela é relativa, e o que se discute é como demarcar a validade da decisão nos julgamentos já realizados.
A exigência de provar o prejuízo causado pelo não cumprimento dessa determinação é o ponto mais polêmico, porém importante, da proposta de Toffoli.  Marco Aurélio disse que a decisão seria favorável aos tubarões, e que dificultaria o combate à corrupção. Mexeu com dois de seus pares, o próprio Toffoli, que em sua fala respondeu indiretamente, lembrando que a decisão vai alcançar todos os réus, não apenas os da Lava Jato, e ajudará também os mais pobres, e o ministro Gilmar Mendes, seu velho desafeto, que lembrou que sempre esteve a favor do combate ao crime, mas sem a utilização de outros crimes. Citou decisões que tomou para dizer que “aqui ninguém pode me dar lição de moral”

O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, acabou apoiado pela maioria do plenário na sua proposta de definir uma tese para ser seguida pelo Judiciário em todos os níveis. Em nome da segurança jurídica e do interesse social, viu sua tese ser apoiada pelo ministro Luis Roberto Barroso, que deu os argumentos técnicos para confrontar a tese de Lewandowski, que exigia um quorum de 8 votos para aprovar o que chamou de “modulação” proposta por Toffoli. Desde a semana passada o ministro Gilmar Mendes repetia que o STF não faria uma modulação, que trata de inconstitucionalidades, mas definiria os termos da decisão. Tratava de evitar a armadilha do quorum qualificado, no que foi apoiado pela maioria.

O ministro Gilmar Mendes aproveitou a ocasião para tratar do assunto a que mais se dedica, falar mal dos procuradores de Curitiba e do ministro Sergio Moro, a quem acusou de transformar a prisão preventiva em “instrumento de tortura” para obter confissões dos presos: “Quem defende a tortura não pode fazer parte desta Corte”, asseverou, referindo-se à possibilidade de Moro vir a ser indicado por Bolsonaro para uma vaga no STF. 

Tanto ele quanto o presidente Dias Toffoli usaram e abusaram de pausas dramáticas nas suas falas, Toffoli rebatendo as criticas de Marco Aurélio, sem citá-lo, mas olhando-o fixamente. Gilmar, para citar trechos do The Intercept que revelaram, segundo sua indignação, atitudes dos procuradores da Lava Jato contra ministros e o próprio Supremo Tribunal Federal. Gilmar deu mais atenção às acusações reveladas pelas conversas roubadas dos celulares dos procuradores do que ao caso em si, que tratou como mais um desdobramento dos abusos de poder cometidos pela “República de Curitiba”. No auge de sua indignação, insinuou um “fetiche sexual” entre procuradores e juízes da Lava Jato.

Merval Pereira,  jornalista - Coluna em O Globo