VOZES - Gazeta do Povo - Madeleine Lacsko
Reflexões sobre princípios e cidadania
Pesquisa com estudantes dos EUA mostra naturalização da intolerância e fim da caguetofobia.
Transformamos o ambiente acadêmico numa competição de delatores
Pesquisa com estudantes dos Estados Unidos mostra que denunciar colegas e professores virou símbolo de virtude.
No mundo todo há discussões sobre liberdade acadêmica, muita gente reclama de represália por motivos ideológicos. A North Dakota State University decidiu fazer uma pesquisa com estudantes de instituições públicas e privadas dos Estados Unidos para saber se eles pensam o mesmo. A amostragem incluiu mil universitários do quarto ano. O resultado foi publicado num relatório chamado "2021 American College Student - Freedom, Progress and Flourishing Survey".
Ao ler os resultados e compreender a análise do que pensam os estudantes, que foram separados pela tendência ideológica declarada, fiquei feliz ao ver quebrado um tabu de preconceito que vivi na fase escolar e universitária. Finalmente conseguimos fazer a inclusão do dedo-duro, antes tão discriminado por seus potenciais alvos. Agora nem precisa mais de bedel, sobra dedo-duro.
Até lembrei uma música que está na raiz da cultura brasileira, do saudoso e multitalentoso Bezerra da Silva, defunto caguete:
"Caguete é mesmo um tremendo canalha
Nem morto não dá sossego
Chegou no inferno entregou o Diabo
E lá no céu caguetou São Pedro
Ainda disse que não adianta
Por que a onda dele era mesmo entregar
Quando o caguete é um bom caguete
Ele cagueta em qualquer lugar"
Felizmente superamos a caguetofobia que tantas chagas deixou em gerações passadas. Passamos à era da delação premiada, onde é uma virtude não resolver problema nenhum e passar o tempo todo apontando o dedo para os defeitos dos pares. Na verdade, a atitude correta é essa e não só para defeitos, também para o que pode parecer para alguns que foi defeito ou descuido. Quando eu era criança, caguetagem era altamente proibida. Como não havia parque de areia antialérgica, grupos aprendiam a sobreviver e não ceder poder aos maldosos ou radicais. Grupos divididos são fracos, tolerar quem divide o grupo em vez de resolver problema fortalece esse indivíduo. Depois, passou-se a tolerar a caguetagem. Agora, segundo o estudo, passou a ser obrigatória.
Lá nos anos 1980 e 1990 havia muito o que delatar porque a gente saía de casa pela manhã, não tinha celular, não tinha rede social, passava o dia todo fora e ninguém sabia da nossa vida. Agora que a gente já entrega tudo de mão beijada na rede social e está ao alcance de um toque 24 horas por dia, tem de ser hacker para levantar assunto para delatar. Exatamente por isso, pela efetiva falta de conteúdo para entregar os outros, já que todo mundo se entrega sozinho, temos uma flexibilização do conceito. A delação não é apenas obrigatória, ela também pode envolver invenções e equiparações elásticas. Qualquer deslize, lapso ou até uma birra podem ser transformados num crime inafiançável se a turba vier junto.
Quando se pergunta aos estudantes quantos concordam que se proíba uma leitura da qual os alunos discordam, a maioria acha errado. Discordar não é motivo para proibição de conteúdos. Mas e se der uma esticadinha na discordância para "coisas que te fazem sentir desconfortável?" Ou coisas que você considera "ofensivas"? Daí não só pode como deve vetar. As colunas verdes são estudantes que se dizem liberais, o que não é similar ao que nós chamamos de liberal no Brasil. Ficaria mais próximo do que nós chamamos de progressista, a oposição ao conservador. A maior diferença de opinião entre os campos políticos está na questão de reportar à universidade professores e colegas que dizem algo considerado ofensivo. Os liberais são radicalmente a favor e conservadores radicalmente contra.
Ocorre que estamos no terreno da subjetividade. Entre o que alguém diz achar ofensivo e uma ofensa real há uma distância da Terra à Lua. E se, por exemplo, você disser que é ofensivo toda vez que discorda de alguém? Eu acho ofensivo não concordar comigo, ué! Daí tudo bem reportar. Ah, mas ninguém chegaria a esse ponto. Já passou desse ponto.
As histórias reais de professores universitários que foram punidos nos Estados Unidos e Reino Unido são assustadoras. Em um pulo, transforma-se a divergência em ofensa, que é equiparada a ofensas gravíssimas e a pessoa passa a ser sistematicamente perseguida a menos que mude de opinião. O perseguida consiste em adicionar tempero à história, inventar mais coisas terríveis sobre a pessoa para justificar perseguição.
Equipara-se, por exemplo, chamar alguém pelo pronome que a pessoa não gosta de transfobia. E não importa se a troca foi deslize ou pura provocação, todos serão tratados como se fossem esses delinquentes imundos que espancam homossexuais com lâmpadas fluorescentes. Justifica-se toda e qualquer difamação, distorção, desrespeito. A pessoa tem de perder o emprego e toda sua obra ser esquecida.
Não há gradação das reações, tanto faz o que realmente ocorreu, a intenção e o dano provocado ou não. Toda vez em que alguém contraria a patrulha identitária será por "fobia" de algo, por um defeito grave na alma da pessoa. A partir deste momento, passa a ser virtude apontar para essa pessoa o tempo todo como símbolo de tudo aquilo que se deve repelir. Precisa no mínimo uma pessoa por dia.
A patrulha identitária já passou tanto do limite que nem os queridinhos deles aguentam mais os cacoetes dos bedéis puritanos. Sabem quem já reclamou dos excessos no patrulhamento este ano? Não foi o Trump. Foram Barack Obama, Glenn Greenwald e Chimamanda Ngozi Adichie. Nem eles são bons o suficiente para passar no crivo da patrulha identitária. Ninguém presta, só quem está patrulhando. Há um dado interessante da pergunta que é a comparação entre quem acha correto denunciar falas ofensivas e quem se sente à vontade debatendo temas espinhosos. Parte dos estudantes que dizem ter total liberdade para debater todo e qualquer tema dentro da universidade também é favorável a denunciar quem diz coisas ofensivas.
Há uma grande diferença de ideologia política entre quem diz que a discussão é livre e quem diz que não é. Para progressistas, há liberdade de debate e isso é incentivado. Os estudantes conservadores discordam e dizem que não podem debater certos temas. Eles são contra denúncias justificadas por "sentir-se ofendido". Dá a impressão de que há liberdade para falar de tudo, desde que seja o tudo que os progressistas querem.
Já há ótimas iniciativas para enfrentar a situação. No Brasil, infelizmente, a gente é bom de iniciativa e péssimo de terminativa. Tivemos a ideia de proibir tudo, tira essa coisa de doutrinação. Ocorre que não existe ser humano imparcial, proibir uma coisa dá abertura para a exigência de que se proíba outra no polo oposto. Isso escala até que se crie uma competição de quem proíbe mais coisas dos outros. Não é possível combater autoritarismo com autoritarismo de sinal trocado.
Reino Unido e Dinamarca, países ligeiramente menos esculhambados que o nosso, decidiram ir pelo caminho da garantia da liberdade de expressão de todos. O Reino Unido está fazendo uma legislação que dê direito de reparação a quem for calado ou prejudicado por diferenças ideológicas. Essas pessoas poderiam pedir indenização em dinheiro ou outra forma de compensação, a ser analisada por uma comissão específica. Já a Dinamarca optou por um caminho diferente, mirando na militância em si, não nas universidades. Numa iniciativa inédita, todos os partidos do Congresso fizeram uma união em torno de um documento onde recomendam à militância que não invada o espaço da construção de conhecimento. O documento diz textualmente que exageros na militância política estão levando a uma confusão entre ideologia e teoria crítica, principalmente na área de humanas.
A pesquisa da North Dakota State University mostra que a lealdade ao grupo ideológico já é um valor moral mais importante para os jovens progressistas do que a lealdade aos próprios colegas. Eles não veem a questão assim, entendem que analisam racionalmente a realidade e a caguetagem é uma necessidade social. Como nos ensinou Bezerra da Silva, nem São Pedro consegue escapar disso. Precisamos abrir os olhos.
Madeleine Lacsko, colunista - Gazeta do Povo - VOZES