Procurador-geral vai a congresso de jornalistas, diz coisas assombrosas, e muitos dos presentes acharam graça. O Acusador Geral da República faz lambança com o conceito de “prova diabólica”. E o diabo da ignorância!
Rodrigo Janot é realmente uma figura singular da República. É capaz de dizer coisas assombrosas, que são tomadas, no entanto, como corriqueiras. Ele é responsável, claro!, por aquilo que pensa. Mas não pode ser responsabilizado pelo silêncio cúmplice dos que deveriam, ou por vergonha na cara ou por dever de ofício, ou ambos, reagir ao que diz.
Na sua mais recente e espetacular
intervenção no debate, o doutor explica: o prêmio a um criminoso delator
é proporcional ao seu delito. Ou por outra: o lugar de ladrão
pé-de-chinelo é a cadeia, e o do ladrão de alto coturno, Nova York. Ou
como já sintetizou certo orador: “O roubar com pouco poder faz os
piratas; o roubar com muito, os Alexandres”.
Vamos lá.
Janot participou do 12º Congresso da
Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). Concedeu uma
entrevista no painel “Desafios do Combate à Corrupção: Operação Lava
Jato”. Recorreu a imagens como “cachacinha, torresminho, bombom Garoto,
flecha, bambu”… Entendo. É mais fácil, sob muitos aspectos, conceder uma
entrevista do que proferir uma palestra. Sempre sobra lugar para a
cachacinha como metáfora, o que, numa fala mais formal, talvez parecesse
fora de tom. E as pessoas riem, claro!
O homem também expeliu bobagens sobre a
chamada “prova diabólica” — que chamou “satânica” para fazer
embaixadinha pra galera. E os presentes riram de novo. O apelo à
ignorância costuma descontrair o ambiente. Janot falando a uma associação de
jornalistas investigativos faz sentido. Especialmente quando se sabe que
a investigação da imprensa, nesse caso, vamos convir, praticamente se
resume aos vazamentos ilegais. Sem aquele procurador amigo ou delegado
boa-praça, nada feito! Não se investiga coisa nenhuma!. O que se tem é
vazamento do que está sob investigação — e vazamento seletivo, que
atende aos interesses do… vazador.
Assim, na condição de chefe do MPF, cabe
com propriedade a Janot o epíteto de “Vazador Geral da República”. E
logo será preciso criar a Abrajova: Associação Brasileira dos
Jornalistas Vazativos. Ora, até eu fui vítima da safadeza, como sabem,
com a violação de um fundamento constitucional. O MPF se eximiu de
responsabilidade. A PF também. Vai ver foi obra dos aprendizes de
satanás…
Piratas e Alexandres
Vamos ao que disse o doutor de mais sério, de realmente impressionante. Ele defendeu o escandaloso acordo que celebrou com Joesley Batista. Gostou tanto que, segundo diz, faria tudo de novo. E resolveu ser didático a uma plateia muito amistosa. Segundo transcrevem a Folha e o UOL:
Vamos ao que disse o doutor de mais sério, de realmente impressionante. Ele defendeu o escandaloso acordo que celebrou com Joesley Batista. Gostou tanto que, segundo diz, faria tudo de novo. E resolveu ser didático a uma plateia muito amistosa. Segundo transcrevem a Folha e o UOL:
“Vocês
estariam me perguntando assim: ‘Você é um louco… Como alguém chega, lhe
apresenta altas autoridades da República praticando crime, e você não
faz nada, não aceitou fazer acordo com essa pessoa? Você deixou que o
crime continuasse a ser praticado. (…) Que escolha eu tinha? A de Sofia.
Vou não fazer o acordo e fingir que não vi isso? (…) É fácil ser herói
retroativo (…). Não adianta chegar para o colaborador e dizer: ‘Meu
amigo Joesley, venha aqui. Vou te propor um acordo, beleza? Você gosta
de pão de mel? Você não gosta de torresmo e uma cachacinha?”.
Transforme-se a historinha num conceito:
um bandido, por mais facinoroso que seja, pouco importa quantos crimes
tenha cometido, sairá impune se delatar “as mais altas autoridades da
República”. Está em curso uma revolução no direito penal brasileiro.
Segundo o “Beccaria da Cachacinha”, o que determina a sanção a um crime é
a importância da pessoa delatada pelo bandido.
Notem: se Joesley fosse um coitadinho,
poder-se-ia lhe oferecer um bombom. Sendo quem é, precisa de muito mais.
Nestes tempos em que se alega estar em curso um combate sem igual da
impunidade, registrem: é o delinquir muito que conduz ao perdão.
Terei de lembrar aqui um trecho do “Sermão do Bom Ladrão”, de Padre Vieira.
Navegava
Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia,
e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava
roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau
ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim.
“Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós,
porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é
culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os
piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem
distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros
definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem
animum latronis et piratae habentem. “Se o Rei de Macedônia, ou
qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e
o rei, todos têm o mesmo lugar e merecem o mesmo nome”.
“Prova satânica”
Em sua fala, Janot defendeu a denúncia que apresentou contra Michel Temer e resolveu fazer uma gracinha. Segundo disse, seria preciso uma “prova satânica” para evidenciar a ligação entre o presidente e a mala com R$ 500 mil carregada por seu ex-assessor Rodrigo Rocha Loures.
Em sua fala, Janot defendeu a denúncia que apresentou contra Michel Temer e resolveu fazer uma gracinha. Segundo disse, seria preciso uma “prova satânica” para evidenciar a ligação entre o presidente e a mala com R$ 500 mil carregada por seu ex-assessor Rodrigo Rocha Loures.
Em suma: Janot admite que apresentou uma denúncia sem provas.
Mas atenção! Ele está fazendo um gracejo
truculento e estuprando de novo o direito. O termo empregado nos meios
jurídicos não é “prova satânica”, mas “prova diabólica”, que é aquela
impossível ou quase impossível de ser produzida. Por que ele recorreu ao
termo “satânica”? Ora, para se referir a boatos infundados, que correm
nos esgotos das redes sociais, de que o presidente seria um satanista.
Um dos presentes ao evento perguntou se a evidência seria satânica pela
dificuldade de obtê-la ou pelo sujeito a que se refere. O
procurador-geral, claro!, disse que falava da dificuldade. E riu. E
todos riram de novo. Como é mesmo? O apelo à ignorância costuma
descontrair o ambiente.
Observem: hoje em dia, o direito
brasileiro consagra, em muitas áreas, o que é conhecido como “Teoria
Dinâmica de Distribuição do Ônus da Prova”. O que quer dizer? A máxima
de “cabe a quem acusa o ônus da prova” é substituída por outro conceito,
consagrado no Artigo 373 do novo Código de Processo Civil. Está lá:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
Vale dizer: o ônus da prova fica com
quem tem melhor condições de suportá-lo. Ou por outra, em determinadas
circunstâncias, o juiz pode considerar que ele fica com o acusado, sim.
Ocorre que…
Ocorre que, no direito penal, a música é outra: o ônus da prova pertence exclusivamente à acusação — e ainda bem que é assim! Logo, não cabe ao sr. procurador da “cachacinha como metáfora” vir com essa conversa de prova diabólica. Que tal atentar para o que escreveu o ministro Celso de Mello, um entusiasta quase fanático da Lava Jato, na ementa do Habeas Corpus 73338? A saber:
Ocorre que, no direito penal, a música é outra: o ônus da prova pertence exclusivamente à acusação — e ainda bem que é assim! Logo, não cabe ao sr. procurador da “cachacinha como metáfora” vir com essa conversa de prova diabólica. Que tal atentar para o que escreveu o ministro Celso de Mello, um entusiasta quase fanático da Lava Jato, na ementa do Habeas Corpus 73338? A saber:
“Nenhuma
acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua
inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a
culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de
direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo
político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de
pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado
provar a sua própria inocência”.
Como se viu, João Vaccari Neto,
condenado por Sérgio Moro, acabou absolvido pelo TRF4. Os procuradores
que o acusaram devem ter pensado como Janot: “Ah, todo mundo sabe que é
corrupto. Não temos como provar. Isso seria prova diabólica. Então vamos
tentar a condenação sem provas mesmo”. Como nada havia além as delações, o petista foi absolvido.
A síntese das sínteses: esse misto de
arrogância, incompetência e heterodoxia do MPF, sob o comando de Janot,
resulta em impunidade de petistas, Joesleys, cobras, lagartos e, acima
de tudo, tubarões.
Mas Janot faria tudo outra vez! E diz que vai disparar flechas enquanto tiver bambu.
Pausa para o torresminho com cachaça.