A insegurança jurídica tem efeitos desastrosos tanto para a economia quanto para a política de um país. A estabilidade de normas e instituições é uma premissa básica para que a sociedade tenha condições de prosperar e viver em harmonia.
Mais que isso: não pode existir Estado de direito sem que existam estabilidade jurídica e respeito às liberdades individuais e ao direito de propriedade, entre outros. Mas, no Brasil, o entendimento da legislação muda a todo momento, fazendo com que decisões anteriores sejam rotineiramente desrespeitadas ou anuladas.
Esse
processo não vem de hoje: em um país no qual algumas leis “pegam” e
outras não, já nos habituamos ao sentimento do provisório: o que vale
hoje pode deixar de valer amanhã, e o que foi decidido no ano passado
pode ser revertido no ano que vem; as interpretações da lei mudam ao
sabor dos ventos da ideologia e das maiorias de ocasião. É o país das
reversões.[opinião de um leigo: um dos maiores absurdos é um ministro do Supremo poder reverter seu voto até a conclusão final do julgamento = ainda que seja o primeiro a votar um supremo ministro tem o direito de mudar seu voto, mesmo após o 11º voto - o último - ter sido proferido, o que em nosso entendimento, de leigo, permite que um voto proferido iniciando o julgamento seja modificado = adaptado = às conveniências do momento.]
Mas não é só isso: já nos habituamos também, à sensação de que a justiça com minúscula (como sentimento interior do indivíduo) e a Justiça com maiúscula (como poder constituído) vivem em crescente descompasso no Brasil.
Para só citar três episódios recentes: foi a Justiça com maiúscula que mandou a polícia devolver um helicóptero Airbus para o PCC; foi a Justiça com maiúscula que libertou um traficante condenado com o argumento de que ele foi abordado pela polícia porque “estava nervoso”; e foi a Justiça com maiúscula que mandou soltar outro bandido, que atirou na cabeça de uma policial, porque claramente ele “não teve intenção de matar”.
Isso também é insegurança jurídica porque, diante de notícias assim, o cidadão de bem deixa de acreditar nas instituições que deveriam protegê-lo. Já na economia, a insegurança jurídica provoca, por exemplo, um permanente sentimento de desconfiança e inibe o apetite dos investidores, com evidente impacto no crescimento e na geração de empregos.
Parece evidente que, quanto maior a estabilidade jurídica, quanto maior a clareza sobre o entendimento e a aplicação das leis (e sobre as consequências de seu descumprimento), mais atraente se torna o ambiente de negócios de um país, o que beneficia toda a sociedade.
Quando não conseguem prever as consequências a longo prazo de uma decisão de investimento com base na norma jurídica vigente (porque, justamente, essa norma pode mudar na semana que vem, ou ganhar uma nova e criativa interpretação), aumenta a aversão do risco.
Empreendedorismo exige um mínimo de previsibilidade: qualquer mudança nas normas tributárias, por exemplo, exige que a equação financeira de um negócio seja refeita.
Para os pequenos empresários, um novo tributo ou uma mudança na interpretação da norma pode representar a diferença entre contratar mais dois ou três funcionários ou fechar as portas. A reforma tributária que vem por aí, aliás, parece assustadora.
Este é o problema da insegurança jurídica: ela deixa todo mundo inseguro, não apenas o prejudicado da hora. Quem é beneficiado hoje pode ser a bola da vez amanhã
Na política, as consequências da insegurança jurídica são ainda mais nocivas. Por exemplo, está em curso no TSE o julgamento que, ao que tudo indica, tornará inelegível o ex-presidente Jair Bolsonaro (por ter convocado uma reunião com embaixadores para tratar do sistema eleitoral brasileiro).
Mas há um aspecto nesse processo que vem passando despercebido: o já citado sentimento de que tudo neste país é passageiro, transitório, temporário tira peso e relevância da decisão do TSE pela inelegibilidade.
Porque, justamente, nada impede que daqui a dois anos esta decisão seja revertida. Não muito tempo atrás quem estava inelegível (e até preso) era o atual presidente, como resultado de longos e exaustivos processos judiciais.
A Lava-Jato, por sua vez, que era reconhecida internacionalmente com um marco no combate à corrupção do Brasil, é hoje apresentada como uma farsa, a ponto de quem dela participou estar sujeito a ser tratado como um cão sarnento. De novo, não vou entrar no mérito: só lembro essas coisas para mostrar como tudo no nosso país pode mudar muito rapidamente – o que aliás foi tema de um artigo recente do Polzonoff.
Pois bem, parece certo que Bolsonaro será declarado inelegível – se não neste processo, em algum dos outros 15 que correm contra ele na Justiça Eleitoral (mas provavelmente será neste mesmo).
Mas fica no ar a pergunta: alguém tem certeza absoluta de que Bolsonaro continuará inelegível daqui a três anos, em 2026? Acho que nem mesmo o mais empedernido petista, nem mesmo o mais entusiasmado defensor do ativismo judicial tem, no íntimo, essa certeza.
Porque este é o problema da insegurança jurídica: ela deixa todo mundo inseguro, não apenas o prejudicado da vez. Quem é beneficiado hoje pode ser a bola da vez amanhã, e vice-versa.
Se você defende que a Constituição seja rasgada hoje para perseguir um adversário, não poderá reclamar se amanhã rasgarem a Constituição para perseguir você. Se você defende e até comemora a censura e o cancelamento de seus adversários hoje, não poderá reclamar se amanhã o censurado e cancelado for você.
É nesse contexto que deve ser entendida a relativamente escassa repercussão que o julgamento da Aije 0600814-85 está tendo entre os cidadãos comuns. Esta reportagem da BBC, por exemplo, estranha a pouca mobilização da militância bolsonarista, especulando sobre os motivos. “Especialistas” sugerem que esse desinteresse traduziria o "desembarque" do eleitorado bolsonarista, que já estaria buscando uma alternativa.
Nada mais equivocado. Se os cidadãos comuns que votaram em Bolsonaro (e nem todo mundo que votou em Bolsonaro é bolsonarista, vale lembrar) não estão dando importância ao atual julgamento é porque:
- primeiro, sabem que não adiantaria nada protestar, que é “jogo jogado”;
- segundo, entendem que, na nova democracia, ir às ruas protestar pode dar cadeia;
- terceiro e mais importante, porque sentem, no íntimo, que se trata de uma decisão que poderá ser revertida daqui a dois anos, dependendo do que acontecer até lá. E muita coisa pode acontecer. O próprio ex-presidente já garantiu que não vai deixar a política e afirmou, de forma nada enigmática: “Em 2026, a composição do TSE será outra”.