Não é de hoje que, arvorando-se em consciência moral da Nação, promotores e procuradores desenvolvem cruzadas contra o que julgam ir contra suas convicções
Uma semana depois de o Ministério Público do Trabalho (MPT) ter encaminhado uma “notificação recomendatória” à Embraer e à Boeing, pedindo a elas que informem as salvaguardas trabalhistas que incluirão no acordo comercial que estão negociando, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) lançou uma pesquisa para saber quais áreas, segundo a população, devem ser prioritárias na atuação dos promotores e procuradores de Justiça nos próximos dez anos. Os dois fatos têm, como denominador comum, a recorrente discussão sobre os limites da atuação da corporação. Pela Constituição, o MP é uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Na prática, isso significa que o órgão tem as atribuições de exigir o cumprimento das leis, defender as garantias fundamentais, preservar os interesses da coletividade e proteger os interesses individuais – aqueles de que os cidadãos não podem abrir mão.
O problema, contudo, é que os promotores e procuradores interpretaram essas atribuições de forma extensiva, indo muito além do que o legislador constitucional pretendia, quando concedeu autonomia funcional e administrativa ao MP. Graças à esperteza hermenêutica, a corporação ampliou o alcance de suas prerrogativas, passando a agir como se tivesse competência para interferir de modo ilimitado nas relações econômicas entre empresas privadas, no livre jogo de mercado e no funcionamento das instituições políticas. Não é de hoje que, arvorando-se em consciência moral da Nação, promotores e procuradores desenvolvem cruzadas contra o que julgam ir contra suas convicções moralistas, políticas e ideológicas, investigando, julgando e condenando à execração pública cidadãos e empresas, sem reunir provas que os tribunais consideram cabais. Também não é de hoje que, fundamentando suas iniciativas em princípios vagos ou indeterminados, como os da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, a corporação imagina ter o poder de dirigir o País.
O ofício encaminhado pelo MPT à Embraer e à Boeing é um exemplo desse sentimento de onipotência. Além de exigir que as duas empresas mantenham “o patamar de empregos no Brasil” e apresentem relatórios sobre o risco de “possível transferência da cadeia produtiva para solo americano”, a notificação pede que elas levem em conta a posição dos sindicatos de metalúrgicos com relação ao negócio e as sugestões feitas em audiências públicas promovidas pela Comissão de Direitos Humanos do Senado. Apesar de alegar que só está agindo “preventivamente”, o MPT fixou o prazo de 15 dias para que as empresas informem como cumprirão as “recomendações”, sob pena de serem acionadas judicialmente.
A pesquisa lançada pelo CNMP para ouvir da população quais áreas os promotores e procuradores de Justiça deverão priorizar, sob o pretexto de reunir informações para a elaboração de um planejamento decenal estratégico do MP, vai na mesma linha de inconsequência. A pesquisa apresenta 11 áreas – como direitos humanos, combate à corrupção, infância e adolescência, segurança pública, educação e saúde – e pede aos consultados, que não têm formação jurídica e não conhecem a legislação civil, penal e processual, que definam as mais importantes, numa escala de 1 a 5. Nas chamadas questões abertas, a pesquisa indaga dos consultados quais são, a seu ver, as “oportunidades” (sic) para o MP nos próximos dez anos.
Se não fosse mal formulada e com respostas previsíveis, a pesquisa poderia servir ao CNMP para obrigar o MP a restringir sua atuação aos limites fixados pela Constituição. Mas, do modo como está sendo conduzida, permitindo manipulação do “clamor público”, ela pode legitimar a atuação “justiceira” de um órgão que expandiu suas atribuições e sua margem de arbítrio ao sabor das conveniências e da interpretação que cada promotor ou procurador faz da lei.
Editorial - O Estado de S. Paulo