Revista Oeste
Em 28 de outubro de 2002, fui ver o comício da vitória do PT. Seria uma festa e tanto, imaginei. Em campanha desde 1982, quando não passou do quarto lugar da disputa do governo de São Paulo, Luiz Inácio Lula da Silva havia amargado três derrotas em eleições presidenciais. Em 1989, fora vencido por Fernando Collor no segundo turno. Em 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso o atropelara já na rodada inicial. Só no século 21 a seita da estrela vermelha pôde comemorar a concretização do sonho perseguido anos a fio por seu único deus. Cheguei às imediações do palco armado na Paulista convencido de que testemunharia um Carnaval temporão. Dois ou três discursos bastaram para escancarar o estranho defeito de fabricação: o PT não consegue ser feliz nem mesmo nos momentos de triunfo.
Filho de um político que se candidatou a prefeito de Taquaritinga com menos de 30 anos, exerceu quatro mandatos e morreu no cargo dias depois de virar setentão, nasci e cresci entre discurseiras nas carrocerias de caminhão, santinhos, cartazes e faixas, microfones e caixas de som, cédulas e urnas, foguetórios e aplausos, beijos e abraços, choro convulsivo e ranger de dentes — e nada era mais deslumbrante que o comício da vitória. “É o único dia em que um político é completamente feliz”, dizia Adail Nunes da Silva. “A gente esquece adversários, insultos, brigas, qualquer coisa desagradável ocorrida na campanha. Só lembramos dos que nos ajudaram a ganhar. Não se vê ninguém de mau humor. É pura festa.”
Também nos pequenos municípios paulistas a campanha eleitoral frequentemente roçava o ponto de combustão, as trocas de golpes retóricos provocavam hematomas e ferimentos, de vez em quando se consumava um nocaute. Adail Nunes da Silva sempre foi um homem de bem com a vida, mas num embate eleitoral nada tinha de lorde inglês. Mirava preferencialmente o fígado dos adversários com jabs irônicos e ganchos mordazes. Acusava o desafeto pouco risonho de, no cinema, torcer pelo bandido do faroeste e pelos chifres do miúra no filme que mostrava uma tourada. Quando enfrentou pela primeira vez um devoto de Lula, afirmava que nos comícios do PT a plateia era tão diminuta que, terminado o discurso, o próprio candidato descia do palanque para ampliar a salva de palmas.
O ex-presidiário mentiu à vontade, com o desembaraço de quem transformou em boletins do PT veículos de comunicação que perderam a vergonha
Ele batia e levava. Aos 10 anos, pedi ao irmão de 17 que me levasse a um comício do inimigo. Prudente, Flávio repassou a tarefa a um forasteiro amigo que estava de passagem pela cidade. A primeira frase que ouvi foi proferida por um candidato a vereador da tribo ademarista: “O Adail é ladrão, roubou os trilhos da estrada de ferro”. Contei ao meu pai o que ouvira, ele respondeu com uma lição singela: “Quando alguém falar mal da gente, lembre que a gente vive falando mal deles. Isso é coisa de campanha eleitoral”. Terminada a apuração, os derrotados passavam uma semana pescando e os vencedores se esbaldavam no comício da vitória. Essa foi a regra até o nascimento do Partido dos Trabalhadores.
Neste 30 de outubro em que Lula se elegeu de novo, atiçados pelo palavrório agora permanentemente raivoso do pregador, os participantes da missa negra na Paulista insultaram Jair Bolsonaro, a família Bolsonaro, ministros de Bolsonaro, jornalistas acusados de bolsonaristas, eleitores declarados de Bolsonaro e suspeitos de terem votado em Bolsonaro. Lula foi dispensado de dizer o que pretende fazer no governo: o público preferia ouvir o que Bolsonaro não poderá fazer. As boas notícias na economia foram tratadas como fake news. O ex-presidiário mentiu à vontade, com o desembaraço de quem transformou em boletins do PT veículos de comunicação que perderam a vergonha. Os vencedores não esperavam a brusca mudança na paisagem política do Brasil que conferiu contornos de data histórica ao 2 de novembro de 2022.
Em milhares de cidades, as ruas foram tomadas por manifestantes antilulistas que, pacificamente, formalizaram o nascimento da oposição que o PT nunca teve de enfrentar. Os atos de protestos — alguns portentosos, todos espontâneos — alteraram dramaticamente o jogo. Quando perdia a eleição, o PT nem esperava a posse do adversário vitorioso para tentar despejá-lo do cargo. Entre 1989 e 2022, os intolerantes irredutíveis gritaram “Fora Collor!”, “Fora Itamar!”, “Fora FHC”, “Fora Temer” e “Fora Bolsonaro”. Desta vez, os súditos do chefe do Petrolão ouviram um inesperado e estrepitoso “Fora Lula!”. Sem multidões a mobilizar, tiveram de suportar em casa a barulheira que apenas começou.
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Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste