Graças à magistratura, as cadeias estão lotadas de onipotentes da política, mas o vírus também contamina o Judiciário
Para quem
acha que já viu tudo, a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) convocou uma
greve da categoria para o próximo dia 15, uma semana antes da sessão em que o
Supremo Tribunal Federal julgará a legalidade do auxílio-moradia dos
magistrados. Uma manifestação de juízes contra um julgamento.
Não
bastasse isso, a Ajufe argumenta que “esse benefício é recebido por todas as
carreiras”. É verdade, pois os procuradores também recebem o mimo, mas é também
um exagero, pois não se conhecem casos de outros servidores que recebem esse
auxílio sendo donos de vários imóveis na cidade em que moram. A Ajufe poderia
defender a extinção ampla, geral e irrestrita do auxílio-moradia, mas toma uma
posição que equivale, no limite, a defender a anulação de todas as sentenças
porque há pessoas que praticaram os mesmos atos e não foram julgadas. Uma
ilegalidade não ampara outra.
A greve
da Ajufe está fadada ao ridículo, mas reflete um culto à onipotência que faz
mal à Justiça e ao Direito. A magistratura é um ofício poderoso e solitário. Em
todos os países do mundo, os juízes são soberanos nas suas alçadas. Os ministros
do STF dizem-se “supremos”. Lá nunca houve caso em que um deles, ao votar num
julgamento de forma contrária à que votara em caso anterior, tenha explicado a
mudança com a sinceridade do juiz David Souter, da Corte Suprema dos Estados
Unidos: “Ignorância, meus senhores, ignorância”. (Tratava-se de um litígio
sobre a legalidade da existência de casas de strip-tease perto de escolas.)
Graças ao
repórter Kalleo Coura, está na rede um áudio de nove minutos no qual o juiz Solón Mota Junior, da 2ª Vara de Família de Fortaleza, ofendeu a defensora
pública Sabrina Veras. Desde novembro, a advogada pedia urgência, sem sucesso,
para ser recebida pelo magistrado para transferir a guarda de duas crianças
para o pai, pois a mãe as espancava. Em janeiro, uma das meninas morreu. Duas
assessoras do juiz acusavam a defensora de ter dito que elas haviam matado a
menina. Ela nega que o tenha feito. (Mota Junior repreendeu a advogada quando
ela o tratou por “você”, mas chamou-a de “minha filha”.)
O
meritíssimo chamou-a de “advogada desqualificada”. Poderia ser o jogo jogado,
pois nos bate-bocas do STF vai-se por essa linha, mas ele foi além: “Você se
queimou comigo. Lamento dizer, você está começando agora… se queimou comigo. E
vai se queimar com tantos quanto eu fale essa história.” Juiz ameaçando
advogada é uma anomalia.
As
crianças contavam que a mãe as espancava, e um meritíssimo de Vara de Família
argumenta: “Uma criança de 4 anos tem discernimento? Vai interferir num
posicionamento de um juiz?” Tudo bem, deve-se esperar que ela atinja a
maioridade. O doutor
Mota Junior não exercitou seus conhecimentos do Direito, apenas expôs o poder
que julga ter. O Brasil tem 17 mil juízes, e não se pode achar que coisas desse
tipo sejam comuns, mas quando a Associação dos Juízes Federais pede uma greve
contra um julgamento, alguns parafusos estão soltos.
Graças à
deusa da Justiça, os nove minutos do meritíssimo Mota Junior estão na rede,
no site Jota. Se ele soubesse que iria ao ar, certamente seria mais comedido.
Elio
Gaspari, jornalista - O Globo