O Estado de S.Paulo
Há episódios que não podem ser esquecidos, mas os juízes não fazem justiça, são servos da lei
São Paulo, 31 de janeiro de 2010. No dia seguinte voltaríamos a
Brasília, eu ao Supremo Tribunal Federal (STF). Almoçávamos num
restaurante ao lado de nosso apartamento em São Paulo, minha mulher e
eu, nossa conversa girando em torno da decisão que eu planejava tomar
assim que lá chegasse, a decisão de me aposentar. Então, de repente, eu
lhe disse que, se então me aposentasse, anos depois diria a mim mesmo
que isso fizera para fugir do encargo de relator da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153.
Uma entrevista minha publicada aqui, no Estadão, em 28 de agosto (A14),
levou-me agora a relembrar o passado. Ir de volta a ele, 2010,
relembrando-o - o passado -, foi fundamental para que eu decidisse
deixar o tribunal somente após o julgamento desse processo. Antes de tudo, talvez, um episódio que suportei em 1970 - quando estive
preso no DOI/Codi, de lá saindo pelas mãos de Dilson Funaro e Abreu
Sodré -, episódio que há de ter levado advogados autores dessa ADPF a um
desastrado equívoco. À suposição de que por conta desse episódio eu me
comportaria não como magistrado fiel cumpridor do Direito Positivo, mas
pretendendo a ele retornar e vingar o passado.
Tentei durante todo o tempo em que exerci a magistratura ser conduzido pela phronesis
aristotélica. Reafirmando que juízes e tribunais são vinculados pelo
dever de aplicar as leis. Dever de praticar prudência, produzir
jurisprudência, e não arte ou ciência. Como reafirmei aqui mesmo, em
artigo publicado na edição de 12 de maio de 2018, fazer e aplicar as
leis (lex) e fazer justiça (jus) não se confundem. Assim procedi como relator da ADPF 153. Como um autêntico juiz, não como
ator diante de câmeras de televisão. Convicto de que os juízes não
fazem justiça, são servos da lei.
Lendo O Ser e o Nada dou-me conta de que a eles se aplica o
quanto Sartre diz da conduta do garçom de um café, que executa uma série
de gestos solícitos para atender o cliente, traz o pedido até a mesa
equilibrando a bandeja, etc. Exatamente assim são os juízes ao cumprirem
o papel que a Constituição lhes atribui. Podem ser tudo, no sentido de
que não são perpetuamente juízes. Mas enquanto juízes hão de exercer,
representar seu papel nos termos da Constituição e da legalidade. Não o
que são quando cumprem outros papéis - de professor, artesão ou
jardineiro, por exemplo - e se relacionam com os outros ou consigo
mesmo. Enquanto não estiverem a judicar, poderão prevalecer os seus
valores. Como juízes, contudo, hão de submeter-se à Constituição e às
leis, unicamente nos seus quadros tomando decisões.
Tenho agora em minhas mãos o voto que proferi na inesquecível sessão do
STF, em abril de 2010, de onde recolho trechos que me permito a esta
altura relembrar.
O artigo 1.º da Lei 6.683/79 concedeu anistia a todos quantos, no
período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes políticos ou conexos com estes, seu parágrafo 1.º
definindo como conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com
crimes políticos ou praticados por motivação política”.
No Estado Democrático de Direito o Poder Judiciário não está autorizado a
dar outra redação, diversa da nele contemplada, a qualquer texto
normativo. Cabe bem lembrarmos, neste passo, trecho do voto do ministro
Orozimbo Nonato no Recurso Extraordinário Criminal 10.177, julgado em 11
de maio de 1948: “Ao Poder Judiciário cabe apenas o encargo de
interpretar a lei que traduz a anistia, sua extensão e alcance quanto
aos fatos e às pessoas. No que tange ao mais, nada lhe cumpre fazer”.
A anistia da Lei de 1979 foi reafirmada no texto da Emenda
Constitucional (EC) 26/85 e pelo poder constituinte da Constituição de
1988. Todos, estão todos como que (re)anistiados pela emenda, que
abrange inclusive os que foram condenados pela prática de crimes de
terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Por isso não tem
sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não
recebida pela Constituição de 1988. Pois a nova Constituição a
(re)instaurou em seu ato originário. A norma prevalece, mas o texto - o
mesmo texto - foi sobreposto por outro. O texto da lei ordinária de 1979
resultou substituído pelo texto da emenda constitucional, que a
constitucionalizou.
A EC 26/85 consubstancia a ruptura da ordem constitucional que decaiu no
advento da Constituição de 5 de outubro de 1988. Daí que a reafirmação
da anistia da lei de 1979 já não pertence à ordem decaída. Está
integrada na nova ordem. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado
pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1.º do artigo
4.º da EC 26/85, existirá a par dele (dicção do § 2.º do artigo 2.º da
Lei de Introdução ao Código Civil).
Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional,
sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova
ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a
norma-origem. No bojo dessa totalidade - totalidade que do novo sistema
normativo - tem-se que “(é) concedida, igualmente, anistia aos autores
de crimes políticos ou conexos” praticados no período compreendido entre
2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Ao fim destas linhas, lembrando o que afirmei ao final do voto que
proferi no julgamento da ADPF 153, é necessário dizermos, vigorosa e
reiteradamente, que a decisão pela sua improcedência não exclui o
repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e
militares, policiais ou de delinquentes. Há episódios na nossa vida que
não podem ser esquecidos, mas os juízes - repito - não fazem justiça,
são servos da lei.
Eros Roberto Grau, advogado, professor titular aposentado e ministro aposentado do STF - O Estado de S. Paulo