Mulher empreendedora
A iniciativa vai destinar R$ 5 milhões para empreendedores negros.
A Defensoria Pública da União ingressou com ação judicial contra o uso de critérios raciais para seleção no programa: “o autor da petição, o defensor Jovino Bento Júnior” afirmou na peça que “embora a inclusão social de negros e qualquer outro grupo seja desejável,” o sistema adotado pela seleção era ilícito
e que há alternativas para atingir as mesmas finalidades dentro da
legalidade. A petição inicial foi muito bem redigida e fundamentada.
A medida judicial causou celeuma e certos grupos autoritários tentaram inclusive intimidar o Defensor Público. Outros setores, buscaram apresentar argumentos contrários à ação. Um grupo de trabalho da própria Defensoria lançou uma “nota técnica” contra a ação movida pelo colega. A nota é juridicamente muito frágil. Ela
não aborda a legislação aplicável ao caso e se baseia em reportagens do
CONJUR. Apesar de o CONJUR ser um excelente canal de debates jurídicos,
a simples menção a trechos de reportagens extraídas do site não pode
ser apresentada como uma nota técnica. O documento ainda encerra com um ato de repúdio ao ajuizamento da ação, algo mais próprio para manifestos de militância do que para notas técnicas de órgãos de Estado
Creio, no entanto, que a seleção é, de fato, ilícita e que o Defensor Público Federal acertou ao impugná-la. Isso por uma razão muito clara: o uso do critério racial em seleções de pessoas para relações de emprego é vedado pela Constituição.
Com efeito, a Constituição não deixa margem a dúvidas ao estabelecer, por meio de regra expressa, em seu art. 7º, inciso XXX, que “são direitos dos trabalhadores (…) a proibição (…) de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.
Frise-se que o dispositivo configura o que, no jargão jurídico, chama-se de uma regra. Ou seja, a norma institui um comando que diretamente proíbe um comportamento (uso de critério racial em seleção trabalhista).
Não se trata pois de um princípio, no sentido de uma norma que apenas
indica um estado de coisas desejável e que deva ser buscado na maior
medida possível, como reduzir a pobreza, promover o bem de todos, ou
garantir a liberdade de iniciativa etc.. Espero que esses exemplos
tornem a dicotomia entre regras e princípios suficientemente clara mesmo
para o público leigo.
Ocorre que, havendo regra constitucional
que regula o caso, é descabido buscar-se soluções alternativas por meio
de interpretações que busquem ponderar princípios. É o que corretamente
ensina o professor da Universidade de Nova Iorque Richard H. Pildes, em
seu artigo Avoiding Balancing: The Role of Exclusionary Reasons in
Constitutional Law. No mesmo sentido, dentre os juristas brasileiros, é a
lição do professor da USP Humberto Ávila: “no caso de regras
constitucionais, os princípios não podem ter o condão de afastar as
regras imediatamente aplicáveis situadas no mesmo plano. Isso porque as
regras têm a função, precisamente, de resolver um conflito (…),
funcionando suas razões (autoritativas) como razões que bloqueiam o uso
das razões decorrentes de princípios (contributivas)” (p. 5).
Surpreendentemente, a regra citada, do art. 7º, XXX, da Constituição, foi omitida em todas as notas técnicas acima mencionadas.
Reconhecemos
que os brasileiros negros sofrem de condições sociais desprivilegiadas.
O desemprego entre negros é muito superior ao registrado entre brancos.
Segundo o relatório “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”,
divulgado pelo IBGE em novembro de 2019, entre negros, os níveis de
pobreza eram muito mais elevados, ao passo que a média salarial era
inferior e o percentual de ocupação em cargos de gerência também era
mais baixo. A violência contra negros também é, em regra, maior.Tudo
isso revela, inegavelmente, uma realidade que precisa ser alterada. Por
isso, iniciativas que pretendam reduzir a desigualdade que afeta de
modo desproporcional a parcela de negros da população são, de fato,
louváveis.
Contudo, nem toda medida capaz de alcançar uma
finalidade positiva está, necessariamente, autorizada. Isso porque o
Constituinte e o legislador podem verificar que a medida viola valores
inegociáveis ou que possui custos que superam os benefícios; ou ainda
que, mesmo tendo benefícios superiores, estes poderiam ser atingidos por
outros meios que não geram os mesmos impactos negativos.
Acredito que seja o que ocorre no caso.Há
razões para que o Constituinte vede, de modo absoluto, o uso do
critério racial para seleções de emprego, mesmo que para beneficiar
grupos com condição desprivilegiada.Primeiramente, porque o uso
peremptório do critério racial, ao excluir aprioristicamente uma pessoa
em virtude de sua cor, configura, em regra, uma injustiça. Até mesmo
porque, no mundo real, quem busca emprego não são grupos, mas pessoas. E
para uma pessoa branca e pobre, pouco importa que em média as pessoas
de sua cor sejam mais ricas ou ocupem mais cargos de gerência. Ela não
goza dessa condição média favorável e por isso vê a exclusão como
injusta.
Em consequência disso, a seleção baseada na cor da pele
passa a apresentar custos e riscos, uma vez que pode causar revolta em
quem se vê injustamente excluído sequer da possibilidade de participar
do certame. Isso tem o potencial inegável de acirrar tensões raciais.
Aliás, o sistema de seleção racial pode inclusive gerar distorções em
casos concretos, ao excluir, por exemplo, portadores de necessidades
especiais que não sejam negros, ainda que se trate de um grupo com
condições sociais desprivilegiadas e que muito provavelmente também
ocupa poucas vagas de direção na empresa. Ou mulheres que criam os
filhos sozinhas e que não sejam negras, grupo que também possui, em
média, piores condições sociais.
Em segundo lugar: no caso de
seleções de emprego, há alternativas para favorecer grupos
desprivilegiados, sem exclusão apriorística e formal baseada na cor da
pele. Por exemplo, o empregador pode orientar os responsáveis pela
seleção a levar o critério do nível médio social do grupo a que a pessoa
pertença. Ou a favorecer pessoas de grupos com pouca representatividade
em dada função ou setor da instituição. Assim, havendo candidato de
grupo desfavorecido, ele será privilegiado. Isso tem o benefício de não
exigir exclusão formal e a priori, e ainda evitar distorções em casos
concretos. Por exemplo: digamos que a empresa que conte com menos negros
em quadros de direção também tenha menos mulheres em tais funções. Num
caso concreto, aparecem apenas homens negros, todos eles com boas
condições sociais e econômicas. Por outro lado, uma mulher que não é
negra, mas é mãe sozinha se apresenta. Ora, ainda que, em regra, negros
tenham condições piores, no caso concreto isso pode não ocorrer. Assim,
diante dessa situação inusitada, a empresa poderia optar pela candidata
mulher, mesmo não sendo negra. Poderia, de todo modo, preferir o
candidato negro. Mas nesse caso a seleção seria mais holística e não
baseada apenas na cor, o que é vedado pela Constituição, como já vimos.
Creio
que seria possível ao Parlamento, mediante Emenda Constitucional,
reexaminar a questão e aceitar as chamadas ações afirmativas em seleção
de emprego. Haverá quem diga que isso não seria possível, em virtude de o
art. 7º, inciso XXX, da Constituição ser uma cláusula pétrea. Contudo,
como já explicamos em outro artigo (no qual abordávamos a questão da
PEC para prisão em segunda instância), nossa Constituição não impede
qualquer modificação em dispositivos que configuram cláusulas pétreas.
Conforme decidiu o próprio STF, no Mandado de Segurança 32.262: “não se
proíbe toda e qualquer alteração no enunciado textual ou no regime
constitucional de um direito fundamental, mas apenas a deliberação de
propostas tendentes a aboli-lo – i.e., daquelas que, uma vez aprovadas,
atingiriam seu núcleo essencial, esvaziando ou minimizando em excesso a
proteção conferida pelo direito. É preciso encontrar, no particular, o
ponto de equilíbrio que preserve o núcleo de identidade da Constituição
sem promover o engessamento da deliberação democrática por parte do
Congresso Nacional.” [aceitar ações afirmativas em seleção de emprego seria na prática, de fato e de direito, abolir aquele dispositivo - já que a aceitação ainda permitida via redação destacando uma ressalva, acabaria com a proibição atual.
Ainda que a redação atual permanecesse o acréscimo de uma ressalva desfigurava tudo. Ficaria algo tipo parecer de advogado que se estende deixando a impressão de uma posição, mas próximo ao final opina em contrário a tudo que deu a entender no inicio, deixando os incautos perdidos.]
Assim, creio que seria possível uma emenda
permitindo que a legislação infraconstitucional, estabelecendo critérios
e prazos, admitisse esse tipo de ação afirmativa.Contudo, penso
que a matéria reclama deliberação do Congresso. É necessário debater em
sociedade se queremos admitir que pessoas sejam excluídas por sua cor
de pele; e, se excepcionalmente a resposta for sim, em que condições.
Por
derradeiro, cabe mencionar que não se desconhece o fato de nosso
ordenamento jurídico já aceitar, em certos casos, o uso dessas ações
afirmativas, inclusive com critérios raciais. Isso está previsto no
Estatuto da Igualdade Racial em tratados internacionais sobre direitos
humanos. Por exemplo: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, em seu art. 1º, § 4º, dispõe
que “não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais
tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos
grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção
que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos
igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais,
contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de
direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após
terem sido alcançados os seus objetivos”.
[Estamos diante de uma situação 'esquisita': uma disposição inconstitucional inserida em um 'estatuto' inserido em tratado internacional e com o aval do Supremo.
Tal situação bizarra leva a se perguntar: o que vale mais? um dispositivo da Constituição com redação clara ou um norma contrária inserida em tratado internacional?
Aliás, essas contradições absurdas é que produzem situações absurdas, tipo uma suprema decisão, monocrática, determina que se escolha o primeiro colocado entre os indicados em uma lista tríplice.
A pergunta inevitável é: se tem que escolher o primeiro colocado,para que listra tríplice?
Encerrando: a nossa notória falta de saber jurídico nos leva a ousar sugerir que ou o Supremo contém seu furor legisferante e cessa de ler uma coisa e interpretar da forma que convém supremo ministro, ou se refaz a Constituição, enxugando o texto.]
Contudo, quanto a isso,
primeiramente, o dispositivo parece reclamar regulamentação legal. Ele
afirma que o mecanismo não pode permanecer após alcance de seus
objetivos. De fato, as ações afirmativas são tidas como instrumentos
temporários, o que foi confirmado pelo STF no julgamento da ADPF 186.
Assim, há que se ter uma regulação que defina, com suficiente clareza,
quais os objetivos e prazo para reanálise da política e suas metas.
Ademais,
lembre-se que no caso das relações de emprego, a Constituição possui
regra expressa vedando o uso de critério racial. E a Constituição
prevalece sobre tratados internacionais, mesmo que relacionados a
direitos humanos, como já decidiu o STF no Recurso Extraordinário
466.343 (entendimento diversas vezes reafirmado pelo Tribunal). Logo, há
que se entender que as ações afirmativas são cabíveis, com base na lei e
nos tratados internacionais, salvo no caso em que norma superior impôs
vedação expressa e peremptória. É o caso do uso de critério racial como
critério de admissão em relações de emprego.
Para concluir,
lembramos que a respeitável nota da PFDC citada acima afirma que a
inércia ante à atual situação de desigualdade que prejudica os negros é
discriminatória. De fato, não se pode permanecer inerte antes situações
de vulnerabilidade social que atinjam desproporcionalmente certos grupos
sociais. Mas os mecanismos utilizados para combater o problema devem
permanecer dentro da legalidade constitucional. A criação de novos
sistemas não contemplados na ordem jurídica em vigor devem ser debatidos
em sociedade e, se for o caso, aprovados por meio do Congresso
Nacional. Nem se diga que por serem minorias, esses grupos teriam
dificuldades em movimentar o sistema de representação política. Isso
porque nos últimos anos várias leis relacionadas à matéria foram
aprovadas em âmbito nacional e em vários estados, mostrando que a
sociedade e os parlamentos são sensíveis ao tema.
André Uliano Vozes, coluna na Gazeta do Povo - Vozes