José Nêumanne: O paraíso da meia galinha morta
A supersafra da agroindústria, o futebol interditado e o samba avariado são as delícias do Brasil
Bastou chover um pouco mais que o esperado e parte da supersafra
brasileira de soja “mica”, pois não consegue chegar ao porto de Belém,
do qual 11 navios, sem poder mais esperar, se mandaram para
embarcadouros mais ao sul, em Santos (SP) e Paranaguá (PR). A erva está
encalhada em 100 quilômetros não asfaltados da BR-163, rodovia que é
hoje a principal ligação entre uma grande zona produtora de grãos, em
Mato Grosso, e os navios atracados no norte.
Segundo reportagem de Lu
Aiko Otta, do Estado em Brasília, o ministro da Agricultura,
Blairo Maggi, lamentou: “Dinheiro que estava na mesa, de uma grande
colheita, está indo para o ralo, nos buracos das estradas. Dá pena de
ver.”
Os produtores tiveram
prejuízo de US$ 6 milhões só com a “demourage”, taxa paga pela
permanência das embarcações ancoradas. Caso consiga ser embarcada no
Sudeste ou no Sul, a carga desviada poderá sobrecarregar as entradas
desses portos, com mais despesas de espera. No total, o setor estima que
nesta safra os sojicultores perderão R$ 350 milhões, segundo informou o
presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais
(Abiove), Carlo Lovatelli. “Estamos queimando notas de cem dólares, uma
atrás da outra”, afirmou o executivo. Segundo Maggi, o produtor que
vende a leguminosa precisa entregar no prazo, no local definido pelo
comprador. Diante do atraso no escoamento da produção local, a
alternativa é, muitas vezes, adquiri-la de outros países produtores,
como Estados Unidos e Argentina, para honrar o contrato.
A supersafra resulta
da galinha dos ovos de ouro da economia brasileira, que é a
agroindústria. Mas, como o casal da fábula que ganha a galinha
miraculosa de um duende e a mata para não ter de esperar o dia seguinte
para a postura de mais um ovo e retirar do ventre da ave todos os ovos
de uma vez, em vez de um por um, dia a dia no que lhe restar de vida. O
conto infantil termina com a seguinte moral: “Espreitando pela janela, o
duende ria-se e abanava a cabeça, pensando que a verdadeira felicidade
não está em ter ou não ouro, mas, sim, no coração de cada um.”
A pressa, que, como
diziam nossos avós, é inimiga da perfeição, transforma o Brasil num
imenso cadáver de galináceo. Aqui já houve ferrovias, e não há mais. A
solução para o transporte da supersafra, que se tem repetido ano a ano,
assim como o atoleiro na BR-163, seria ferroviária. Mas todo o
transporte passou a ser feito por rodovias desde a instalação das
montadoras de automóveis no Brasil, nos anos 50, no governo de Juscelino
Kubitschek. Sessenta anos depois, a malha rodoviária está imprestável,
porque o Estado não investe uma pataca nas vias de escoamento da safra, e
o resultado é o que se vê em Mato Grosso. Assim como nos portos.
E a safra recorde que
está micando é só uma das muitas outras evidências de que vai ser
difícil dar um jeito no Brasil. Na semana passada, os habitantes de
Campina Grande, no alto do Planalto da Borborema, e do sertão da Paraíba
comemoraram a chegada da água da transposição do Rio São Francisco à
represa de Barreiro, em Sertânia, no interior de Pernambuco. O
reservatório fica a 100 quilômetros de Monteiro, às margens do rio
Paraíba, que forma Boqueirão, açude que abastece a segunda maior cidade
do Estado e que título a um romance regionalista do pioneiro José
Américo de Almeida. Como lhe restam 3% do volume morto, a notícia
provocou a euforia dos paraibanos sedentos. Infelizmente, contudo, a
barragem, inaugurada no fim de fevereiro, vazou no começo de março. E
agora todos estão à mercê de boas notícias sobre o estancamento desse
vazamento.
Não podia haver
retrato mais acabado da ironia do destino de galinha morta do Brasil. Em
vez de ser levada para dar de beber ao interior do Nordeste, a água do
Velho Chico invadiu propriedades e repetiu, em escala muito menor, a
tragédia da lama que matou o Rio Doce, em Minas. Bem mais distante de
Sertânia, a população de Fortaleza, capital do Ceará, não tem água para
beber e cozinhar, dependendo para isso do açude do Castanhão, também
pela hora da morte, amém. Lá, a esta altura, mesmo com chuvas
inesperadas e recentes, a dependência completa dos caminhões-pipa só
será combatida se a promessa da transposição do rio da unidade nacional
feita por Lula e Dilma for cumprida. Os dois compraram canecas para
viajarem para o sertão e beberem a água do rio longínquo, mas agoram vem
essa notícia desapontadora.
Construída no contorno
da belíssima Baía de Guanabara, o Rio de Janeiro, cujos reflexos
luminosos noturnos foram decantados num musical de Cole Porter, mas que
também já foi definida numa marchinha de carnaval como “cidade que me
seduz, de dia falta água, de noite falta luz”, não tem mais problemas
para consumo humano de água potável. O melhor governante que já teve,
Carlos Lacerda, resolveu o problema secular com o uso das águas do
Guandu. No entanto, dá outros exemplos de como a galinha morta Brasil
impera de norte a sul.
O jogo final da
tradicional e charmosa Taça Guanabara, um Fla-Flu, tido e havido como o
maior clássico do futebol mundial, foi jogado para um público reduzido
para suas tradições, num estádio menor, porque o “gigante do Maracanã”
está fechado por causa de um conflito judicial entre o Estado
imprevidente e a iniciativa privada picareta. A Justiça e a polícia,
incapazes de garantir a segurança do público pagante, exigiram que a
final fosse jogada para torcida única. Fluminense e Flamengo puderam
jogar para os torcedores dos dois times, que se arriscaram a ir ao
subúrbio sem muita garantia, mas só puderam comprar ingressos depois da
tardinha de sexta-feira, quando os clubes obtiveram a liminar para
cancelar a estúpida decisão anterior.
Isso ocorreu uma
semana depois do desfile das escolas de samba no sambódromo erguido na
gestão de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro no Estado do Rio. No desfile de
domingo, um carro alegórico da Paraíso do Tuiuti, guiado por um
caminhoneiro que nunca havia dirigido um veículo na pista do samba,
esmagou parte da multidão que se acotovelava para ver o desfile no setor
1, ferindo 20 pessoas. Na madrugada seguinte, a parte de cima da
alegoria móvel da Unidos da Tijuca desabou por excesso de peso, levando
foliões ao hospital.
Na Quarta-Feira de
Cinzas, a Liga das Escolas de Samba – Liesa – concluiu que o primeiro
desastre foi um “acidente” e o segundo teria resultado de uma falha no
sistema hidráulico. Sem reconhecer que havia gente demais sambando em
cima de um carro que não tinha condições técnicas para desfilar. No
paraíso da galinha morta, esse senhor manteve as duas escolas
trapalhonas no desfile do ano que vem, perdoando seus erros e exigiu da
prefeitura do Rio que refaça o percurso da pista do samba.
Esse não será assunto
para a sra. Luislinda Valois, ministra dos Direitos Humanos do governo
Temer, levar no ano que vem ao debate na comissão temática das Nações
Unidos, à qual em sabatina neste ano omitiu o desastre da lama matadora
do Rio Doce na Minas histórica e os massacres de início de “ano novo,
morte nova”, nos presídios de Manaus, Boa Vista e Nísia Floresta, na
Grande Natal. Evoé, Momo Rei!
Capistrano de Abreu
dizia que o primeiro artigo da Constituição ideal para o Brasil seria:
“Todo brasileiro deve ter vergonha na cara”. E somente mais um:
“Revogam-se as disposições em contrário”. Em seu livro Mau Humor – uma antologia definitiva de frases venenosas, Ruy Castro atribuiu ao jornalista Ivan Lessa, filho de Orígenes Lessa, autor de O Feijão e o Sonho,
outra frase que servirá como uma luva (ou uma meia) para pôr fim a este
artigo: “O brasileiro é um povo com os pés no chão. E as mãos também”.
Ou seja: uma meia galinha morta.