Com a impunidade de Cunha, você podia até
defender Lula e Dilma numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil
A prisão
do companheiro Eduardo Cunha deixou aturdidos os heróis da resistência
democrática. Como vão explicar isso em casa?
Cunha
era o grande vilão do golpe, a mente perversa que arquitetou a destituição
da mulher honesta para entregar o poder aos brancos, velhos, recatados e do lar. A impunidade do Darth Vader do
PMDB era o lastro da lenda, a prova de que estava tudo armado para arrancar do governo
os quadrilheiros do bem. Mas eis que Sérgio Moro, esse
fascista que só persegue os bonzinhos, prende Cunha. E agora?
É grave a
crise. Eduardo Cunha era a reserva moral do PT. E do PSOL, da Rede e seus
genéricos. Com a impunidade dele, você podia até defender Lula e Dilma
numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil na sua cara: bastava
dizer que era contra o Cunha — o fiador do golpe, o homem do sistema. Mas que
sistema é esse que põe seu articulador no xadrez? Ficou confuso. Melhor tomar
uma água de coco, que o sol está forte.
Os juros
começaram a cair depois de quatro anos. A inflação de
outubro é a menor em sete anos, e ano que vem o desemprego começa a baixar. Isso não é mágica, é governo. Temer
faz parte da mobília antiga do PMDB, e não tem nenhuma bandeirinha
simpática para acenar. Se aparecer em alguma negociata, adeus. Mas, ao
assumir o Planalto, resolveu escalar os melhores para tomar conta do dinheiro.
Banco Central, Tesouro, Fazenda, BNDES, Petrobras — todos sendo
desinfetados pelos melhores cérebros, mundialmente reconhecidos.
Por que
Michel Temer fez isso, e não simplesmente substituiu os
parasitas esganados do PT pelos velhacos do PMDB? Não interessa,
perguntem a ele. A vida no Brasil vai melhorar, e isso é muito grave. O que será
daquelas almas puras que gritam “fora Temer” e se tornam
instantaneamente grandiosas? O que será dos corações valentes que ficam bem na
foto denunciando a entrega do país ao bando do Cunha? Talvez só uma Bolsa
Psicanálise para fazer frente a tanto sofrimento.
Na época
do Plano Real foi igualzinho. Na privatização da
telefonia, que
libertou a população dos progressistas retrógrados de sempre, esses mesmos que gritam contra o golpe (ou seus
ancestrais) estavam lá nas barricadas — apedrejando
quem chegava para os leilões. Eram os heróis da resistência democrática
contra a ganância capitalista. Aí a privatização se consumou, a vida de todo
mundo melhorou, e os heróis foram combinar a próxima
narrativa — pelo celular.
A eleição
no Rio de Janeiro, terra de Eduardo Cunha, apresenta um fenômeno surpreendente.
No primeiro turno, a cidade confirmou a sua
vocação de oposição a si mesma. No segundo turno, Marcelo
Crivella disparou. Como pode? Gente esclarecida, eleitores de candidatos respeitáveis
como Fernando Gabeira e que jamais votariam num bispo da Igreja Universal,
cogitando votar em Crivella?
Talvez a
resposta seja simples: Marcelo Freixo é o candidato contra o golpe. O bom
entendedor fez suas contas: o discurso que cultiva a mística de esquerda, à
prova de vida real, é exatamente o que destruiu o país nos últimos 13
anos. Freixo surgiu muito bem na vida pública. Fez um trabalho corajoso
de denúncia das milícias, num tempo em que muitos as viam como justiceiras
contra os traficantes. Se tornou personagem real de “Tropa de elite”, clássico
extraído do trabalho excepcional de Luiz Eduardo Soares — acadêmico de esquerda
que jamais sujeitou sua honestidade intelectual às místicas lucrativas. Já
Freixo preferiu se tornar o personagem de si mesmo. Seria ótimo, se fosse de
verdade.
Falar a
verdade dá trabalho. O
próprio Gabeira correu o risco do suicídio político algumas vezes, para não
trair suas convicções. Primeiro a fazer a crítica da luta armada ainda em plena
ditadura, apoiou a privatização da telefonia pelo governo FH — e na época era
difícil ao eleitorado de esquerda ver aquilo como o melhor para a coletividade,
e não uma traição neoliberal. Depois desembarcou da base de Lula no auge, ao
enxergar a putrefação do governo pré-mensalão: “sonhei o sonho errado”.
As
viúvas do governo que caiu de podre 13 anos depois disso ainda tentam ver em
Dilma (se
lembram dela?)
uma vítima inocente da direita: preferem embelezar o pesadelo a parar de
sonhar. No Rio,
o sonho errado ainda rende um bom mercado eleitoral. Na ânsia de cultivar
essa mística revolucionária, Freixo estimulou protestos violentos (nega, mas
estimulou) — logo ele, que denunciou as milícias sanguinárias. Apoiou
sindicalistas que bloquearam o trânsito e engessaram a cidade. Para vender o
seu peixe humanista, ele prende e arrebenta — como diria o general
Figueiredo.
Infelizmente,
ainda há quem escolha candidato pelo crachá de progressista ou conservador (no
sentido de moderno ou retrógrado). Então vamos lá, sem crachá: quem
põe em risco seus votos para defender o bem comum, como fez Gabeira, é
progressista; quem põe em risco o bem comum para defender seus votos, como
faz Freixo, é conservador.E não adianta botar o Cunha no meio, porque
agora ele está ocupado.
Fonte: Guilherme
Fiuza, jornalista