Flávio Gordon
Desumanização e criminalização do 'bolsonarismo' virou moeda corrente na velha imprensa, nos tribunais e nas bancadas de esquerda
Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Ricardo Stuckert
Proclamado presidente da República pelos amigos do Tribunal Eleitoral, obedecido por uma Suprema Corte inteiramente partidarizada e alheia à Constituição, legitimado por um “consórcio” midiático mais amestrado que o Pravda soviético, respaldado por uma Polícia Federal aparelhada agindo como polícia política, e por Forças Armadas a caminho da bolivarianização, o descondenado em chefe tem se sentido muito à vontade para dar vazão aos seus desejos de ditador.
Já há algum tempo a desumanização e a criminalização do bolsonarismo virou moeda corrente na linguagem da imprensa, dos tribunais superiores e da bancada parlamentar filopetista. Os episódios são muitos. Lembro-me, por exemplo, de quando o blogueiro ultraesquerdista Ricardo Noblat descreveu uma participante do programa Big Brother Brasil como “suspeita de bolsonarismo”. Ou de quando o ministro já notoriamente mais boquirroto do Supremo, esse mesmo que o leitor está imaginando, conclamou “as instituições” e “as pessoas de bem” (e é curioso como, quando interessa à esquerda, o “cidadão de bem” volta a existir) a impor limites aos habitantes de “guetos pré-iluministas”, que questionavam as urnas eletrônicas. Ou ainda, mais recentemente, também surfando no caso Moraes em Roma, de quando o colunista petista Ricardo Kotscho (que em outros tempos talvez fosse descrito como “blogueiro de crachá” ou coisa que o valha) afirmou ser difícil pacificar o país “com tantos bolsonaristas soltos”, convocando toda a sociedade, e não apenas os governantes, a fazê-los “saírem de circulação”. Mas a coisa torna-se realmente preocupante quando ninguém menos que o presidente da República passa a desumanizar dessa forma uma fatia inteira do espectro político nacional, composta de dezenas de milhões de cidadãos. Quando a assim chamada “pacificação” proposta pelo mandatário e seus correligionários (e incluo nesse grupo a maior parte dos jornalistas autoproclamados “profissionais” e dos juízes dos tribunais superiores) passa a se parecer cada vez mais com uma “solução final”, é porque o país entrou num rumo muito perigoso.
Não exagero ao classificar de genocida a retórica do descondenado em chefe.
Obviamente, muito embora os comunistas com orgulho que hoje governam o Brasil pertençam a uma cultura política totalitária que, a exemplo da Alemanha nazista e da URSS stalinista, perpetrou perseguições, violações dos direitos humanos e assassinatos em massa por onde passou (e o faz presentemente, como nas ditaduras venezuelana e nicaraguense, amigas do lulopetismo), a simples possibilidade de que o Brasil enverede por esse caminho infame nos parece, à primeira vista, inconcebível. Confesso que, apesar de familiarizado com a história do movimento revolucionário, circunstância que deveria me vacinar contra a perplexidade, a hipótese também me soa como inverossímil. Contudo, uma releitura recente tornou muito mais perturbadora a análise da situação brasileira, porque antes já se observou a mesma incredulidade em contextos que, de fato, terminaram em morticínio. Refiro-me aos diários do filólogo judeu Victor Klemperer.
Abertamente desumanizados (e ora estrategicamente desarmados) (…), também os “bolsonaristas”, entre perplexos e conscientes, parecem sopesar suas chances.
Nos primeiros anos do novo regime, os registros no diário são todos marcados por esse misto de análise racional, com consequente prognóstico, e perplexidade, como se o espírito do autor andasse na corda bamba entre, por um lado, a convicção do analista de que os algozes seriam, sim, capazes de perpetrar os males mais inimagináveis e, por outro, a insistente e tênue esperança da vítima, segundo a qual não era possível que chegassem a tanto. Mais ou menos como começam a se sentir hoje todos os assim estigmatizados como “bolsonaristas”, ao notarem a ausência de qualquer anteparo institucional entre eles e os ditadores que os querem “extirpar”, Klemperer dá voz ao sentimento generalizado de perplexidade entre os judeus perseguidos, cada vez mais incrédulos, como num pesadelo sem fim, diante daquilo que o historiador do nazismo Ulrich Herbert viria a chamar de “a escalonada indiferença de seus conterrâneos”.
Em 31 de março de 1933, véspera do Judenboykott, Klemperer descreveu o seu estado de espírito: “Cada vez mais desesperançoso. O boicote começa amanhã. Cartazes amarelos, homens de guarda. Nenhuma resposta à impressionante carta dos judeus ao presidente do Reich e ao governo”. Assombrava-o a ausência geral de reação, e até mesmo de percepção, por parte de tantos dentre os seus parceiros de infortúnio. “Ninguém ousa fazer qualquer movimento. Ninguém ousa escrever uma carta ou dar um telefonema. Visitamo-nos uns aos outros e sopesemos nossas chances. Um funcionário do ministério disse isso; um outro, aquilo. Mas ninguém sabe se aquele com a opinião mais favorável restará no cargo, ou em que medida está mesmo no cargo. Nem as feras selvagens têm menos direitos e são mais acossadas (…) Na guerra eu estava sujeito à lei militar, mas a alguma lei ainda assim; agora, estou à mercê de um poder arbitrário”. Trilhos que levam à entrada do campo de concentração de Auschwitz, em Oświęcim, na Polônia | Foto: Rafael Cavlaz/Shutterstock
Abertamente desumanizados (e ora estrategicamente desarmados) por um chefe de Estado vingativo e notoriamente amoral, emboscados por um ministro da Justiça e da Segurança Pública cuja única missão no cargo parece ser inventar pretextos para os encarcerar, destituídos de seus direitos básicos por militantes radicais e serviçais lulopetistas fantasiados de toga, diariamente estigmatizados por uma imprensa que se comporta como alcaguete e propagandista do regime, também os “bolsonaristas”, entre perplexos e conscientes, parecem sopesar suas chances.
Já terá chegado a hora do exílio, ou ainda é cedo? Vale a pena ficar, enfrentando a ditadura de peito aberto, ou escapar com a família antes que seja tarde? Há ainda algum resquício de solução institucional para evitar o expurgo (ou a “extirpação”)? Alguma voz ainda se levantará contra as arbitrariedades de que são vítimas? Haverá um limite para a perfídia? Ora, que os algozes são capazes, racionalmente todos o sabem, pois a proposta de um morticínio purificador é da própria natureza da mentalidade revolucionária. Mas — esta a dúvida inclemente — serão mesmo capazes? Na Alemanha nazista, muitas vezes o maior ou menor tempo de permanência na pergunta significou a diferença entre a morte e a sobrevivência. E, dentre os que se mantiveram perplexos por um prazo excessivo, poucos sobraram para contar a história. Resta saber como será no Brasil sob a ditadura lulopetista. Resta avaliar o prazo-limite para a perplexidade, essa faca de dois gumes anímica, a qual, como diria Primo Levi, ao mesmo tempo que angustia, deprime e retarda-nos qualquer reação, também “desvia a cada instante a nossa atenção da desgraça que pesa sobre nós, tornando a sua percepção fragmentária e, portanto, suportável”.
Leia também “O choramingo canastrão dos arrependidos”
Coluna Flávio Gordon - Revista Oeste